Para o povo moçambicano teria sido bem mais importante que o chefe de Estado português encetasse um diálogo sério com o seu homólogo sobre o respeito pelos direitos humanos, os valores democráticos e as consequências da sua ausência para a maioria dos moçambicanos.
Por Michael Hagedorn
O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa visitou Moçambique pela terceira vez, desta feita durante quatro dias para, segundo declaração oficial, reforçar a cooperação bilateral, impulsionar o comércio e o investimento e dedicar especial atenção aos desafios da paz e da segurança.
A chegada a Moçambique começou com o caloroso acolhimento do seu homólogo, Presidente Nyusi, o “querido presidente, amigo e irmão” de Marcelo. Marcelo aproveitou o momento para referir como sendo positivo o facto de a abstenção de Moçambique na votação da Assembleia Geral das Nações Unidas que condenou a invasão russa da Ucrânia não ter sido uma oposição à condenação.
Na última visita, ocorrida em 2020, Marcelo tinha sido o único presidente de um país da União Europeia presente na tomada de posse de Filipe Nyusi, cujo segundo mandato, conforme constava no relatório dos observadores eleitorais da UE, resultou de fraude eleitoral maciça e intimidação violenta da oposição, incluindo o assassinato do observador eleitoral Anastácio Matavel na cidade de Xai-Xai, por um esquadrão da morte.
Mas tudo isto, já na altura, em nada interessou o Presidente português.
Actualmente está a decorrer em Moçambique o julgamento do caso das “dívidas ocultas”. O Presidente Nyusi tem desenvolvido os maiores esforços para evitar ser ouvido como testemunha, a fim de encobrir o seu envolvimento como então ministro da Defesa.
O caso das "dívidas ocultas" é considerado o maior escândalo de corrupção na África Subsaariana desde os anos 60. Em colaboração com o banco Credit Suisse e o VTB russo, Moçambique endividou-se, à margem do parlamento moçambicano, com um empréstimo extra-orçamental de 2,2 mil milhões de dólares. Nessa operação, altos funcionários governamentais receberam milhões em subornos, alguns dos quais acabaram directamente em contas bancárias em Portugal; na altura, comprovadamente, Nyusi recebeu uma “subvenção” de 1 milhão de dólares para a sua campanha eleitoral.
Mas tudo isto não interessa a Marcelo Rebelo de Sousa, que não perde uma oportunidade para exaltar as excelências moçambicanas. É claro que o Presidente moçambicano e a sua corrupta elite da Frelimo se deleitam com tal amigo e defensor.
E quanto à situação da população em Moçambique?
Moçambique continua a ocupar os últimos lugares nas tabelas mundiais em termos de direitos humanos, corrupção e governação e indicadores de desenvolvimento. De acordo com o Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas, 80% dos cerca de 30 milhões de moçambicanos não conseguem sequer ter uma alimentação adequada. No Índice de Desenvolvimento Humano do PNUD, Moçambique continua a ocupar a 180.ª posição, encontrando-se entre os dez países mais pobres do mundo - apenas ligeiramente melhor do que a Serra Leoa, Burkina Faso, Eritreia, Mali, Burundi, Sudão do Sul, Chade, República Centro-Africana e Níger.
Questiona-se pois: o que andaram a fazer os vários governos da Frelimo deste país rico em recursos nos quase 30 anos desde o fim da guerra civil em 1992, além de providenciarem ao enriquecimento da sua própria elite governante?
Sim, actualmente existe um terrível conflito armado no norte da província de Cabo Delgado, que está a impedir Moçambique de explorar os enormes recursos de gás e outros recursos minerais aí existentes e de os utilizar para o seu desenvolvimento. Mas as causas desse conflito não residem, como o governo moçambicano anda a propagar à comunidade internacional, numa invasão terrorista islâmica oriunda do exterior. Não, as causas são internas; foi o próprio governo que, devido a décadas de negligência da população local, contribuiu para a radicalização dos insurgentes, em especial dos jovens.
Incapaz de proteger a população local com o exército moçambicano, o governo tentou primeiramente combater os insurgentes contratando mercenários, como o suspeito “Grupo Wagner” de Putin e o chamado “DAG” sul-africano. Quando esta tentativa falhou, foi a vez de um contingente de 2000 soldados do exército ruandês irem combater em Moçambique e aos quais, mais tarde, se juntou uma missão militar da SADC [Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral]. Desde então, os ruandeses conseguiram expulsar os rebeldes da região costeira, o que é importante para a exploração de gás, mas os confrontos violentos estão de novo a aumentar e a surgir nas províncias vizinhas.
Portugal quis destacar-se durante a sua presidência da UE e, além de renovar a sua cooperação militar bilateral, promoveu o envio de uma missão de treino militar da UE (EUTM) para Moçambique. Da agenda de Marcelo constava também uma visita ao campo de treino dos instrutores portugueses, tendo o Presidente ficado visivelmente entusiasmado com a demonstração do exército moçambicano e a rapidez da aprendizagem que considerou “espectacular” e “excepcional”.
Foi o próprio governo moçambicano que, devido a décadas de negligência da população local, contribuiu para a radicalização dos insurgentes, em especial dos jovens
Mais uma vez, o que não interessa ao Presidente português é que o exército moçambicano, como todas as instituições estatais, esteja imbuído de corrupção sistémica. Investigações recentes mostram que grande parte das armas dos insurgentes provêm de stocks do exército (vendidas por elementos do exército moçambicano aos insurgentes ou capturadas por eles). O exército moçambicano não tem a confiança da população; são os próprios soldados, cujo soldo é insuficiente, que exigem subornos e roubam comida, além de estarem desacreditados por perpetrarem abusos e violações maciças dos direitos humanos contra a população civil. O povo de Cabo Delgado prefere, por isso, a protecção das forças armadas ruandesas, cujo comportamento é considerado correcto e respeitador.
Quando, pois, a unidade especial formada pela missão da UE liderada por Portugal for para o terreno, há toda a probabilidade de que continue a operar nos moldes usuais deste sistema corrupto.
Pior ainda, não há qualquer garantia de que esta força de reacção rápida não venha a ser usada para atacar manifestantes pacíficos, como tem acontecido repetidamente nos últimos meses em que as forças de segurança reprimiram violentamente protestos pacíficos, incluindo com o assassinato de manifestantes.
Marcelo aproveitou também esta visita para inaugurar um resort turístico de luxo, pertencente a um grupo português e ao Estado moçambicano. Não há dúvida de que as relações comerciais e oportunidades de investimento para a economia portuguesa são prioritárias para Marcelo, só resta saber em que medida isso contribui para o desenvolvimento inclusivo em Moçambique.
Para o povo moçambicano teria sido bem mais importante que Marcelo, como chefe de Estado, encetasse um diálogo sério com o seu homólogo sobre o respeito pelos direitos humanos, os valores democráticos e as consequências da sua ausência para a vida da maioria dos moçambicanos. Valendo-se do argumento da “soberania” para o evitar, demonstra um entendimento restrito e confortável do seu papel. Outros governantes o fizeram noutros países.
Com esta postura populista e o seu anúncio de que em Agosto irá regressar para dar um mergulho no Oceano Índico, ao qual teve de renunciar desta vez ("Custa muito ser Presidente"), Marcelo demonstrou mais uma vez de que lado está e que o seu protagonismo é para si mais importante do que as questões existenciais da maioria da população de Moçambique.
PÚBLICO(Lisboa) – 23.03.2022