Há uma canção da igreja que virou “hit” da revolução lá nos tempos. Ia assim: “hina, hina, hinavela tisokoti kutwanana...” (nós, nós invejamos a harmonia das formigas). Era o ode à unidade, trabalho e vigilância, as três palavras de ordem de então. Recuperava aquela ideia que praticamente toda a gente tem de que as formigas são o exemplo da cooperação, da dedicação ao trabalho e do cuidado pelo outro.
Suponho que o Prémio Formiga outorgado hoje ao Pai da Nação tente recuperar e valorizar estas virtudes da formiga. Não é má ideia. Mas recomendo algum cuidado. Aquilo que a gente faz na melhor das intenções – mas sem a devida informação – pode resultar em coisas que a gente não considerou.
Tenho um interesse especial pelas formigas. Desenvolvi-o há cerca de 20 anos quando um colega me falou de resultados de pesquisa que davam conta duma imagem completamente diferente da que temos. Os resultados diziam que as formigas se roubam umas às outras, se escravizam e, geralmente, têm um comportamento tribal, intolerante e extremamente autoritário.
Há quatro características das formigas que vejo como sinais de aviso para nós como comunidade política. A primeira é que praticamente a maioria das formigas é fêmea. Bom, esse não é o problema. O problema é porque é assim. Ora, é assim porque a raínha é que é responsável pela colónia produto dos seus ovos. A estrutura social é rígida e hierárquica. Todas as outras formigas são operárias e não têm outra função senão trabalhar para a raínha. Quando a colónia já está em funcionamento, a raínha põe ovos com algumas formigas com capacidade reprodutiva reforçada por uma dieta especial (que nem todas as formigas recebem).
Para melhor entenderem isto pensem na Frelimo. Moçambique é uma colónia da Frelimo dirigida por uma raínha – o líder sábio – que tem como função pôr os mozes a trabalharem para a Frelimo, mas na crença de estarem a trabalhar para si ou para a nação. Os membros da Frelimo, sobretudo aqueles que conseguem trocar a sua consciência pela promessa duma vida melhor como militantes, são a geração dos reprodutores que por via de indicações para cargos e outros privilégios recebem uma dieta especial.
A segunda característica da vida social das formigas é que os machos são apenas esperma voador. A sua função é apenas de fornecer esperma – e isto tem uma explicação biológica ligada ao facto de os machos se desenvolverem a partir de ovos não fertilizados ao contrário das fêmeas que, por causa disso, têm duas cópias de genomes (do pai e da mãe) – pelo que assim que fornecem o esperma morrem.
De novo trocado em quinhentas: a estabilidade de Moçambique como comunidade política depende, na cabeça dos membros da Frelimo, da promoção da unanimidade – que tem o nome de “coesão interna” – com o fim de se lograr a “unidade nacional”, um significante vazio. Para que isso aconteça, torna-se necessário garantir que quem não é da Frelimo não tenha expressão (por vezes partem-se pernas, sobretudo nos últimos anos). Até existe um hino que celebra isso: “Frelimo está na moda, doa a quem doer!” cantando em tom maior pelo Pai da Nação.
A terceira característica das formigas é que a raínha só mantém relações sexuais uma vez. Depois disso até nem precisa de comer. Enterra-se num lugar aí, vive da energia conservada e usa o esperma que armazenou para várias vagas reprodutivas. Aqui não é necessária muita imaginação para ver os paralelos. Uma vez no poder, e controlado o Estado, é só sugar as suas tetas e garantir que mais ninguém chegue perto. Daí também a promoção da ideia de que só eles é que sabem com certeza como desenvolver o País e porque debater ou ouvir crítica é sinal de fraqueza. Aquilo é comportamento de raínha saciada.
A quarta e última característica do mundo social da formiga é a cooperação. Na verdade, a cooperação só vale no início quando as raínhas ainda estão a montar a colónia. Assim que a colónia dispõe de operárias robustas, as raínhas lutam forte e feio (e o desfecho é quase sempre a morte) e roubam as operárias das outras para serem escravizadas. As raínhas podem chegar a viver 30 anos (por aí seis mandatos, portanto, faltam quatro)!
De novo, trocado em quinhentas vemos de novo uma cultura de exercício de poder que assenta na aversão ao que é diferente (dentro do grupo que manda – tipo Nyusi vs Guebas – e na relação deste com outros grupos – tipo Frelimo vs Renamo/MDM). O Maniqueísmo em que se tornou a cultura política dominante do País, portanto, ver o mundo como algo que se divide em bons e maus, tem sido responsável pela inviabilização sistemática da nossa independência. No lugar da cooperação no respeito pela diferença legítima de projectos sociais e políticos, temos o culto duma unanimidade funcional à reprodução do poder de um único e mesmo projecto. Mas como isso exige muita energia, quem sofre é o País para o qual não se tem tempo porque proteger o poder se tornou mais importante.
Dito doutro modo, a colónia de formigas que Moz se tornou existe não como expressão da virtude da cooperação. Existe como expressão da prerrogativa da raínha de inviabilizar as outras como condição da sua própria existência. A Frelimo exerce o poder para poder exercer o poder.
Os prémios que se andam a atribuir ao Chefe de Estado não são necessariamente um reconhecimento das suas qualidades (que devem ser muitas, de certeza). São o exercício insidioso e implacável do poder. São uma maneira de desviar a nossa atenção do que precisamos de fazer como comunidade política para sermos a melhor versão de nós mesmos. São o ode à complacência, irresponsabilidade, arrogância e indiferença.
Um Marciano que lesse estes odes todos ao nosso líder havia de morrer de morte matada por não entender como um País tão sabiamente dirigido por um indivíduo tão excepcional se apresenta como Moz se apresenta. E para que conste: não estou a falar do Presidente. Estou a falar daqueles que não o deixam trabalhar.
Sempre que alguém tem a ideia brilhante de enaltecer mais uma qualidade do nosso líder ele está a demonstrar a sua falta de respeito pelos mozes e pelo próprio Presidente que deve desconfiar de tantos encómios. E está a demonstrar falta de vergonha também.