Por João Melo*
Até agora, a posição da maioria dos países africanos em relação à guerra na Ucrânia tem sido de cautela. Na primeira votação realizada na ONU, 26 dos 54 Estados africanos não apoiaram (votaram contra ou abstiveram-se) a resolução condenatória da Rússia e oito não participaram na votação.
Na votação que teve lugar na semana passada para expulsar a Rússia do Conselho dos Direitos Humanos o número de abstenções africanas aumentou.
Estou a ver os campeões da moral e dos bons costumes e/ou os belicistas de sofá a comentarem à hora do chá: o que esperar dos ditadores africanos? Tratemos primeiro do Putin e depois façamos recair sobre tais bárbaros e as suas cabeças ignaras toda a força do nosso poder unilateral!
Como, nos tempos atuais, há muita gente a precisar de aulas de interpretação de texto, tenho de reiterá-lo: cautela e defesa de uma solução diplomática para o atual conflito na Ucrânia, razoável para todos, não é sinónimo de aprovação da invasão russa; por outro lado, condenar a decisão de Moscovo não significa esquecer as várias provocações levadas a cabo pelos EUA/NATO (a União Europeia é um mero peão) contra a Rússia no quadro da sua estratégia de consolidar e expandir a ordem unilateral resultante do fim da Guerra Fria.
A cautela da maioria dos países africanos tem várias motivações. A história – sim, a história importa – é uma delas. “Pedir a Moçambique, por exemplo, que escolha um lado em mais uma guerra entre os EUA e a Rússia é demais. A maioria dos diplomatas estrangeiros provavelmente nunca conheceu essa história.
Mas para os moçambicanos isso não é apenas história, é memória viva” – comentou recentemente o jornalista Joe Hanlon, que teve várias passagens por aquele país do Índico.
A história que ele recorda é exemplar: “A NATO e os EUA apoiaram Portugal há 55 anos na sua guerra para impedir a independência de Moçambique, forçando a Frelimo a recorrer à União Soviética e à China em busca de apoio.
Há 40 anos, o presidente dos EUA, Ronald Reagan, lançou uma guerra por procuração de uma década, usando o apartheid da África do Sul contra Moçambique. Um milhão de moçambicanos morreram e outros cinco milhões – num país de apenas 13 milhões de pessoas – converteram-se em deslocados ou refugiados nos países vizinhos.
A economia e os serviços sociais foram destruídos, com danos estimados em mais de 20 biliões de dólares. A devastação foi muito pior do que qualquer coisa que a Ucrânia tenha sofrido até agora.”
O exemplo moçambicano pode ser usado para outros países africanos. Acrescente-se a isso o chocante espetáculo de “humanitarismo seletivo” (diga-se: racista) a que a humanidade assiste todos em dias em direto, a pretexto da necessária solidariedade que é imperioso prestar a todas as vítimas da atual guerra na Ucrânia.
Além da história e da constatação de que o racismo ocidental continua firme, o que me preocupa, fundamentalmente, são as possíveis consequências desse conflito no futuro próximo e distante dos países africanos.
Só para dar um exemplo de curto prazo, a guerra já está a afetar o fornecimento de grãos ao continente africano (lembre-se que, entre 2015 e 2020, a Rússia e a Ucrânia foram responsáveis por 25% desse fornecimento).
A médio prazo, deverão também ser afetados os projetos de desenvolvimento euro-africanos, devido ao inevitável impacto que a guerra terá nas economias da União Europeia (basta evocar o aumento dos gastos militares).
O meu principal receio, entretanto, é de natureza geopolítica: se a ordem unilateral e neoliberal se consolidar e expandir, como advogam os porta-vozes do capitalismo financeiro vigente (vide artigo de John Micklethwait e Adrian Wooldridge, Bloomberg, 24 de março de 2022), os esforços para construir uma África economicamente unida, autónoma e independente ficarão mais uma vez adiados.
O neocolonialismo terá mais um longo período de sobrevida.
*Escritor e jornalista angolano. Diretor da revista África 21
DN(Lisboa) – 14.04.2022