GUERRA NA UCRÂNIA
Já faltam cereais nos mercados do Norte de África e do Médio Oriente
O impacto sentido depende da localização: países em desvantagem à partida vão continuar na cauda
Trigo, milho, açúcar, óleo vegetal, carne, fertilizantes… o índice de preços da alimentação da FAO, Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, confirma que nunca os valores estiveram tão altos como em março de 2022 desde que começaram a ser medidos, em 1990. O cenário de fundo é a invasão da Ucrânia pela Rússia, países que, em conjunto, exportam 30% do trigo e da cevada do mercado global.
A cascata de consequências pode parecer óbvia quando se tem em conta que os preços das compras no mercado internacional dos cereais são rematados com inclusão do custo de transporte. Uma espécie de “pegada ecológica” avant la lettre, que faz com que a proximidade poupe dinheiro aos compradores, além do preço mais baixo praticado por aqueles dois países.
Com o Mar Negro tornado inoperacional pela guerra, o transporte das colheitas tem agora de usar vias terrestres, atravessando provavelmente a Roménia. É preciso carregar camiões para chegar a outros destinos e a logística é muito mais complexa. Não admira que já não se encontrem alguns cereais, abundantes ainda no final de 2021, à venda nos mercados dos países do Norte de África e do Médio Oriente.
SISTEMAS VULNERÁVEIS
O impacto da guerra nos mercados globais, acrescentado à escala de disrupção que a pandemia de covid-19 trouxera antes, tornou evidente a vulnerabilidade ao caos que têm os nossos sistemas interconectados de alimentação. Um trabalho recente da Associated Press (AP), feito a partir de Nairobi — capital do Quénia, um dos países da costa oriental de África que depende muito da agricultura —, reportava a quantidade de pequenos e médios agricultores que já foram forçados a arranjar alternativas para continuar a plantar as suas culturas desde que deixaram de ter dinheiro para comprar fertilizantes.
Adubo animal (opção limitada), não usar nenhum ou simplesmente desistir passaram a ser as escolhas ao alcance de milhares de agricultores africanos e de outros países de rendimento baixo. Não conseguem chegar aos fertilizantes de nitrogénio, que contêm gás natural na sua composição, desde que o preço deste último aumentou exponencialmente.
Na China, o preço da potassa (sal rico em potássio) aumentou 86% num ano, o dos fertilizantes de nitrogénio subiu 39% e o dos fertilizantes de fósforo 10% no mesmo período. Agricultores da batata do Maine e da Califórnia, nos Estados Unidos, sofrem aumentos de 70% e 100% nos fertilizantes relativamente ao ano anterior.
A crise dos fertilizantes é mais uma condicionante ao fornecimento de alimentos a nível mundial, o qual já fora restringido pela interrupção dos carregamentos de cereais vindos da Ucrânia e da Rússia. A escassez de entregas de trigo, cevada e outros produtos “abre a porta à perspetiva de falta de alimentos e instabilidade política em países do Médio Oriente, África e Ásia, onde milhões de pessoas dependem de pão subsidiado e massas baratas”, escreve a AP.
Não sabendo quanto tempo a guerra vai durar nem quais serão as suas consequências finais, é de prever que a pressão nos preços continue. Aliás, quando o conflito armado começou, “os preços já estavam altos”, lembra ao Expresso Monika Tothova a partir da sede da FAO, em Roma. A especialista insiste que a questão se coloca, em termos globais, nos valores invulgarmente altos e não na falta de produtos. “Mesmo que a guerra na Ucrânia acabe amanhã, irá haver menos trigo para exportar e vai ser necessária uma logística muito complexa e dispendiosa para fazê-lo sair do país.”
Crise de fertilizantes é condicionante ao fornecimento de alimentos a nível mundial
Para países que partem de uma posição de desvantagem, a escassez depende da sua capacidade ou não de comprar cereais em mercados alternativos e a preços mais altos. Tothova exemplifica: no Iémen, Afeganistão, Sudão, Haiti, a crise alimentar pode extremar-se em dias.
O nível da subida dos preços que tem ocorrido em resposta ao conflito na Ucrânia, tanto nos mercados de alimentos como nos de fertilizantes e energia, é de tal ordem “que é muito provável que venhamos a assistir a alterações estruturais em termos de comércio mundial”, diz ao Expresso a investigadora Laura Wellesley, do Programa de Ambiente e Sociedade do think tank britânico Chatham House.
Ainda não houve ruturas de stocks nem falta de cereais, mas os preços subiram 55% desde a semana anterior à invasão da Ucrânia pela Rússia, antecipando o ambiente de dúvida perante o que poderia acontecer. Caso a guerra se prolongue, os países que dependem destes cereais a preço mais acessível podem entrar em escassez a partir de julho, segundo dados do Conselho Internacional de Grãos, citados pela AP.
“Temos de ver quanto trigo ucraniano vai chegar aos mercados”, diz Tothova. Muitos cidadãos empregados na agricultura e na distribuição estão a combater na guerra e haverá dificuldades logísticas em fazer sair os produtos da Ucrânia. Quanto à Rússia, e apesar das sanções de que é alvo, “o trigo russo vai sempre encontrar mercado”, adianta a especialista da FAO.
Trigo, milho, óleos, cevada e farinha são extremamente importantes para a segurança alimentar, em especial nas partes mais pobres do globo. Quanto maior for a insegurança alimentar mais pessoas são atiradas para a pobreza em países como o Egito e o Líbano, onde as dietas básicas dependem do pão subsidiado pelo Estado. Logo no início da invasão russa, o Governo do Egito, maior importador de trigo mundial, tabelou o preço do pão não-subsidiado de forma a controlar os picos.
‘DESGLOBALIZAÇÃO’ À VISTA?
No caso da Europa, o impacto é de outra ordem. Uma potencial escassez de produtos ucranianos e um aumento do preço das rações para gado significa carne e laticínios mais caros. Isto caso os agricultores sejam obrigados a passar os custos acrescidos aos consumidores. “Depende de onde se está. A questão é poder ou não comprar cereais mais caros, ou o acesso que os agricultores possam ter a linhas de crédito para prosseguir a atividade, ou arriscar aumentar as produções em determinada temporada”, conclui Tothova.
Na opinião da investigadora, à medida que os Governos vão construindo resistência a choques futuros, “podemos vir a assistir a um processo de ‘desglobalização’, com priorização dos fornecimentos regionais e locais em vez do comércio internacional”. Já temos testemunhado esforços para “aumentar a produção doméstica e promover a autossuficiência alimentar” como meio de reduzir a exposição ao aumento global dos preços, diz. Dá o exemplo dos “apelos na Europa e Estados Unidos para a suspensão das proteções ambientais do uso da terra”, que favorecem a expansão da produção de cultura de alimentos.
Medidas como estas fazem soar os alarmes da sustentabilidade. Wellesley defende que “resistência de longo prazo” e a resposta “a emergências e a acontecimentos de ‘choque’ não se excluem mutuamente”. “Há estratégias que podem ajudar a mitigar os piores impactos de uma situação de emergência e reduzir, em simultâneo, os riscos de longo prazo.”
Os Governos podem construir “a resistência dos agricultores, dos consumidores e da economia mais alargada aos choques futuros”, frisa a investigadora. E adverte ser isto vital, já que estamos “num mundo com o clima alterado, no qual disrupções de fornecimento e picos de preços vão ser o novo normal”.
EXPRESSO(Lisboa) – 29.04.2022