Como é que Martin Amis explica os milhões de mortos e o completo desrespeito pelo valor da vida humana do comunismo? Através de um ponto que partilha com Montefiore: o comunismo foi um íman de canalhas, de sociopatas, de delatores, de torturadores e assassinos, porque o pior da natureza humana era necessário para o triunfo da ideologia marxista. Sem canalhas, não há vitória comunista
A invasão russa da Ucrânia faz lembrar os piores momentos da URSS, uma das mais terríveis experiências políticas e morais da história da humanidade. Apesar da quantidade gigantesca de provas contra o comunismo (milhões de mortos, prisões, tortura, gulag, fome aplicada de forma industrial a milhões de ucranianos), o comunismo gozou de enorme popularidade junto dos intelectuais ocidentais, os hipócritas dos hipócritas. É contra essa hipocrisia que Martin Amis escreveu um dos melhores livros sobre a psique comunista, em geral, e sobre a psique de Estaline, em particular: “Koba the Dread”.
Tal como outros livros sobre o terror comunista (a biografia de Estaline escrita por Montefiore; “The Whisperers – the private life in Stalin’s Russia", de Orlando Figes; “O arquipélago do Gulag”, de Soljenitsin; “A Mente Captiva”, de Milosz), “Koba the Dread” é demasiado pesado até para quem conhece o terror comunista. Queremos acreditar que aquilo não foi possível, que é obra de ficção. Mas aconteceu mesmo. Os comunistas soviéticos fizeram a maior operação de engenharia humana alguma vez realizada. O preço? Milhões e milhões e milhões de mortos, de prisioneiros, de escravos, de tortura, de violações, de deportações, de crianças tiradas aos seus pais.
Nem toda a gente consegue ler um livro assim e é por isso que o terror comunista (ao contrário do terror nazi, mais cinematográfico e mais ocidental) não é tão conhecido como devia ser. A Alemanha foi invadida e derrotada, conseguimos ver o que ali se passou. A URSS não foi derrotada e o seu terror vermelho ficou enterrado. Os alemães fizeram mea culpa. Os russos não e, por isso, repetem agora a barbárie.
O livro merece várias crónicas, porque há de facto tremendas semelhanças entre a psique de Putin e a psique destes líderes totalitários do passado. Hoje queria apenas destacar o ponto central. Como é que Martin Amis explica os milhões de mortos e o completo desrespeito pelo valor da vida humana do comunismo? Através de um ponto que partilha com Montefiore: o comunismo foi um íman de canalhas, de sociopatas, de delatores, de torturadores e assassinos, porque o pior da natureza humana era necessário para o triunfo da ideologia marxista. Sem canalhas, não há vitória comunista. Ali, naquele espaço mental amoral, um indivíduo podia fazer a maior canalhice no presente e não sentir culpa, porque a culpa era “burguesa” e “reacionária”, e porque essa canalhice no presente era um pilar da utopia do futuro
Amis repete várias vezes esta perplexidade perante o paradoxo do comunismo: a ideologia que prometia a perfeição humana defendia e necessitava – na prática – do pior da natureza humana. O comunismo permitiu que os piores (os delatores, os cobardes, os assassinos, os sociopatas) prendessem e matassem os melhores ou simplesmente as pessoas decentes, as pessoas normais. E tudo isto aconteceu perante o aplauso ou complacência de boa parte da intelectualidade da Europa ocidental, até hoje.
EXPRESSO(Lisboa) – 21.04.2022