O Imperador de Gaza Gungunhana, o mais importante imigrante e preso político do espaço lusófono, já tem uma estátua em sua memória na Câmara Municipal da Angra do Heroísmo, a terceira ilha dos Açores, em Portugal.
A Câmara Municipal da Angra do Heroísmo acaba de inaugurar um monumento em homenagem ao “Leão de Gaza”, quando passam agora 126 anos da condenação ao exílio do Império de Gaza, espaço territorial que deu lugar a atual Moçambique.
Em 2019, o presidente da Câmara Municipal da Angra do Heroísmo, Álamo Meneses, anunciou em primeira mão ao Jornal É@GORA que a autarquia estava “a consultar um conjunto de artistas no sentido de oferecerem ideias” para depois ver se o município erguia “uma estátua ou um monumento” em consagração ao Imperador de Gaza.
A responsabilidade da obra recaiu sobre o escultor de origem alemã Julian Voss-Andreae, que vive atualmente em Portland, no Oregon, cujo trabalho “é conhecido a nível mundial por misturar escultura figurativa com os conhecimentos científicos sobre a natureza da realidade, caracterizada pela sua experiência em diversos campos da ciência a uma profunda paixão pelos mistérios da física quântica têm sido uma fonte contínua de inspiração para o seu trabalho”, indica uma nota publicada na página oficial do município daquela região autónoma dos Açores.
Formado em física quântica e filosofia pelas Universidades de Berlim, Edimburgo e Viena, o escultor Julian Voss-Andreae tem obras que são frequentemente exibidas em feitas e galerias de arte internacionais e podem ser encontradas em grandes coleções por todo o mundo.
“Na sequência dos eventos realizados intitulados ´Relembrando Gungunhana e seus companheiros de exílio`, em junho de 2019, o Município de Angra do Heroísmo encomendou ao escultor Julian Voss-Andreae uma obra com o busto de Gungunhana, personalidade escolhida para homenagear os presos políticos, desterrados, deportados, exilados, refugiados e emigrados forçados que ao longo dos tempos viveram entre nós, nomeadamente, Gungunhana (Império de Gaza, c. 1850 — Angra do Heroísmo, 23 de dezembro de 1906) desterrado nesta cidade de 27 de junho de 1896 até falecer”, refere a Câmara Municipal da Angra do Heroísmo.
Em finais de julho de 2019, a Angra do Heroísmo lançou uma série de atividades em tributo a Gungunhana, eventos que começaram no dia em que, em 1896, o Imperador de Gaza desembarcou em Angra do Heroísmo, a bordo do navio “África”, após ter sido capturado pelo capitão Mouzinho de Albuquerque que comandou um regimento português, em Chaimite, o último reduto da resistência vátua (ou angune, etnia dos líderes de Gaza).
Na altura, a passagem dos 125 anos à prisão do Gungunhana foi marcada ainda pela estreia mundial de um documentário em inglês, intitulado “Remembering Gungunhana and the other Royals that lived amongst us”, e por um ciclo de conferências sobre a importância política de Gungunhana, em debates que se estenderam até julho 2020.
A primeira fase de debates contou com a presença de pelo menos três académicos ligados à História Militar: um de Moçambique, outro de Lisboa e um terceiro de Angra do Heroísmo, o historiador açoriano Jorge Forjaz que assegurou à Lusa que o último imperador de Gaza, Gungunhana, foi tratado com dignidade naquela ilha açoriana onde esteve exilado nos últimos dez anos de vida.
“A palavra humilhação terminou, não no cais, porque eles [Gungunhana e outros três prisioneiros] são entregues no castelo, mas a partir do momento em que são entregues no castelo são prisioneiros de guerra conforme as regras da civilidade mandam”, afirmou, em declarações à Lusa, à margem do ciclo de conferências organizadas pelo Instituto Histórico da Ilha Terceira, uma associação cultural de natureza privada, que se dedica à investigação e divulgação da História dos Açores.
O imperador de Gaza (atualmente Moçambique) foi capturado por Mouzinho de Albuquerque, por resistir à ocupação colonial portuguesa, em 1895, e esteve três meses preso em Monsanto, até ser enviado para a Fortaleza de São João Baptista, em Angra do Heroísmo, com o filho Godide, o tio e conselheiro Molungo e Zixaxa, um chefe de uma tribo que tinha atacado Lourenço Marques (atual Maputo) e que ainda hoje tem descendentes na ilha.
Segundo o curador do Forte de Maputo, Moisés Timba, Gungunhana foi “amarrado e arrastado” até à embarcação que o levaria para Lisboa, mas este não foi o único momento de humilhação a que foi sujeito.
Apresentado como um “troféu de guerra”, foi obrigado a separar-se das sete mulheres (de mais de 300) que o acompanharam até Lisboa, quando foi transferido para a ilha Terceira.
Jorge Forjaz salientou que, segundo os jornais da época, os quatro prisioneiros de Gaza percorreram as principais ruas de Angra do Heroísmo, entre o cais da cidade e a Fortaleza de São João Baptista, no dia 27 de junho de 1896, descalços e com roupas velhas.
“A palavra humilhação termina na hora em que eles passam da alçada do poder nacional para o poder local”, apontou.
Em Lisboa, os jornais criticavam o Governo pelo tratamento dado aos prisioneiros e em Angra do Heroísmo apelaram para que fossem recebidos “com compaixão”, o que acabou por acontecer.
“Não há notícia de um desacato ou de um protesto. Isso para nós terceirenses é agradável de ouvir. Recebemo-los com caridade, que era o que era preciso”, sublinhou o historiador.
Segundo Jorge Forjaz, pouco se sabe sobre o dia-a-dia de Gungunhana, mas entre as ocupações dos quatro prisioneiros estavam, por exemplo, a caça ao coelho e a construção de cestas de bambu, algumas das quais ainda conservadas em Angra do Heroísmo.
“Eles nem sequer estavam presos. Andavam em liberdade lá dentro. À noite é que recolhiam ao calabouço para dormir. Andavam pela fortaleza e pelo Monte Brasil, vinham à cidade… Também não tinham para onde fugir”, apontou, citado pela Lusa.
Três anos depois de chegarem à ilha Terceira, Gungunhana, Godide, Molungo e Zixaxa foram batizados na Sé de Angra, com padrinhos e testemunhas ligados às mais altas instituições de Angra do Heroísmo (câmara municipal, Junta Geral, Governo Civil, liceu, capitania).
“Tiveram uma cerimónia que em Portugal só acontecia com os filhos dos reis. Não conheço nenhuma cerimónia de um batismo de um particular que tivesse sido com esta grandeza”, salientou Jorge Forjaz, cujo bisavô foi padrinho do então batizado Reinaldo Frederico Gungunhana.
O último imperador de Gaza acabou por morrer dez anos depois de chegar a Angra do Heroísmo, mas Zixaxa, batizado como Roberto Frederico Zixaxa, teve dois filhos (um dos quais morreu em criança) e vivem ainda na ilha Terceira três bisnetos seus.
Gungunhana tinha aproximadamente 60 anos quando morreu e foi enterrado na véspera de Natal, velado pelos seus 31 companheiros de exílio também feitos prisioneiros em Angra de Heroísmo.
O documentário “Remembering Gungunhana and the other Royals that lived amongst us”, que teve estreia global nos Açores, realça a importância de Gungunhana enquanto o último monarca da dinastia Jamine, de origem zulu que, entre 1884 e 1895, reinou mais de 1,5 milhão de habitantes num território de 90 mil quilómetros quadrados, no sul de Moçambique.
“Cresci a ouvir histórias sobre um imperador que tinha sido levado por gente branca que eram contadas por minha avó. Só mais tarde é que percebi que se tratava de Gungunhana e que ele era uma pessoa real e não um mito”, disse aos jornalistas o zimbabueano Mosko Kamwendo, realizador do filme sobre o Imperador de Gaza e também da película sobre o percurso do primeiro Presidente moçambicano, Samora Moisés Machel, que produziu há alguns anos. (MM)
As imagens foram retiradas com a devida vénia das páginas do Facebook de Victor Manuel Ávila e da Câmara Municipal da Angra do Heroísmo
In https://jornaleagora.pt/gungunhana-ja-tem-estatua-em-portugal/