Por Madeira Ramos
NOTA: Este conto é todo verdadeiro. Só os nomes da Marieta e do dr. Juiz é que não.
Na Rua Consiglieri Pedroso, perto de um edifício colonial de madeira e zinco, junto aonde mais tarde se instalou a Spence & Weedom, encontrava-se o Hotel Avenida cuja proprietária, a D. Cidália era uma senhora muito considerada e respeitada.
Este Hotel era frequentado por comerciantes e gerentes comerciais daquela zona que entre os anos de 1935 a 1947 no fim do dia se juntavam a beber um whisky e conversar.
Dos seus habitués destacavam-se os Srs. Faria de Almeida, gerente do BNU, António Costa Borges, da firma Costa e Cordeiro, e os gerentes ingleses de empresas ligadas à importação de madeiras, Hunt Crichers, Parry Leon, Union Castle etc.
Geralmente quem servia as bebidas a este grupo era um filho da D. Cidália, o Edmundo Sousa. Era muito estimado por todos, pelo seu feitio agradável e muito bom humor, sendo conhecido pela alcunha “o Mona”, precisamente pela sua simpatia e alegria contagiante.
Naturalmente que com o crescimento da cidade este hotel já não oferecia as condições desejáveis. Alguns clientes e amigos começaram a estimulá-lo no sentido de fazer um novo hotel. A ideia começou a germinar e o Sr. Faria de Almeida assegurou o financiamento. Escolheu-se um local na Av. Miguel Bombarda, no planalto sobre a ravina, que desfrutava de uma vista soberba sobre a baixa da cidade, a baía e a Catembe. A este hotel de arquitectura arrojada, para a época, deu-se o nome de Girassol. Foi construído pelo Sr. Moreira, reputado construtor civil que utilizou técnicas de construção ousadas na época devido a situação do terreno. Na altura “os velhos do Restelo” insurgiram-se contra esta construção que diziam não oferecer condições de segurança e que numa altura de grandes chuvas rebolaria pela encosta abaixo. Mais de 50 anos passados o hotel lá continua, altaneiro, elegante, moderno, inovador, como que um marco daquilo que de mais relevante a cidade teve e continua a ter – carisma.
O Hotel Girassol, dotado do maior conforto, não tinha quartos individuais, só tinha suites. No último andar um restaurante panorâmico equipado com o que de mais moderno havia na época – a Taverna do Girassol.
A cozinha era excelente em variedade, qualidade e requinte, e o maître era um italiano, Sr. Jonas, que estivera largos anos à frente de um grande hotel italiano na Etiópia.
O jantar, animado pela orquestra do grande compositor e músico Artur Fonseca, que tocava piano, o violinista Eduardo Leal e o baterista Zé Bandeira não ficava atrás de qualquer boa orquestra, deste tipo, da Europa. A passagem de ano sempre foi um acontecimento chic e obrigatório naquela cidade e o Hotel Girassol era um local de referência, reservando-se as mesas para o efeito com imensa antecedência. O traje era a rigor e o requinte dos vestidos compridos da Laurentina Borges e os Smokings da alfaiataria da moda davam uma nota de cor, graciosidade e elegância, nessa quente noite do ano.
Naquela altura, em Lourenço Marques os melhores hotéis eram o Hotel Polana, Hotel Cardoso e Hotel Girassol. Este, de facto, dispunha de um atendimento moderno e muito inovador para a época.
O Mona, como era carinhosamente tratado por todos, convidou para estrearem o hotel um grupo de jovens, o Delfim Duarte, o Domingos Cunha, o Albino Morgado, o Agostinho Nunes (filho do Comendador Manuel Nunes de Inhambane) que foram pagar a mensalidade de 3.500$00 com pensão completa e tratamento de roupa.
O Sr. Jonas trouxera consigo dois italianos.
- O Gianni, barman, que preparava cocktails deliciosos, falava muito bem inglês e graças a sua natural simpatia dava muita animação ao bar, muito frequentado por sul-africanos que ali, livres da Lei que no seu país proibia a ingestão de bebidas alcoólicas, se deliciavam quer com a qualidade dos vinhos variados quer pela criatividade com que os apresentava;
- E a Marietta, para governanta dos quartos.
A simpatia e competência destes italianos eram notadas por todos que com eles conviviam.
Havia um número considerável de italianos em Moçambique, refugiados de uma Europa mergulhada na guerra, que ali encontraram trabalho e consideração da parte de todos.
Alguns eram pessoas de grande educação e, dizia-se, até havia um príncipe.
MARIETTA
Marietta era uma mulher dos seus trinta e dois anos, alta, esbelta, cabelos castanhos que lhe tocavam nos ombros com as pontas terminando num caracol que se desmanchava e tornava a enrolar acompanhando os movimentos da cabeça, uns soberbos olhos escuros que ela realçava com um leve traço preto e um pouco de rímel, lábios bem delineados e um sorriso encantador.
Nunca perdeu o sotaque acentuado de italiano o que dava muita musicalidade ao que dizia.
Naquele tempo, havia poucas mulheres, pois muitos homens vinham sós tentar a sua sorte.
Quando, ocasionalmente, ela aparecia na Baixa muitas cabeças se viravam para a apreciar melhor e, diziam, já dera volta `a cabeça de muito homem. Contudo, pouco ou nada se sabia a seu respeito. Tinha uma filha dos seus quinze anos, que deixava adivinhar vir a ser tão bela quanto a mãe e que frequentava a Escola Comercial.
Uns pensavam que havia uma relação entre ela e o Gianni, outros afiançavam que era com o Jonas, contudo o passar do tempo desmentiu estas suposições, o que a tornava ainda mais interessante.
Moçambique era muito diferente de Angola na composição da população. Por motivos que desconheço havia muitas colónias de estrangeiros. Aos referidos italianos juntavam-se gregos, polacos, ismaelitas, muçulmanos, industânicos, paquistaneses, chineses, que ali desenvolviam diversas actividades em paz e harmonia, apesar de praticarem religiões e hábitos muito diversos. Os filhos destes estrangeiros, já de nacionalidade portuguesa, frequentavam as escolas locais e uma sã camaradagem que a prática de desporto mais fortalecia davam a Moçambique uma convivência cosmopolita, única em territórios portugueses.
O facto de Moçambique fazer fronteira com a África do Sul e Rodésia proporcionando uma convivência com culturas diferentes, adquirindo de cada uma delas o que mais nos agradava, desenvolveram, principalmente nas cidades de Lourenço Marques e Beira hábitos que não existiam na Metrópole.
O Hotel Girassol era frequentado por comerciantes ricos, altos funcionários que doutras cidades se deslocavam a LM ou, vindos da Metrópole ali se hospedavam até organizarem as suas vidas.
Nessas condições ali permaneceu umas semanas um alto funcionário que, depois, foi colocado na cidade da Beira.
Era um homem muito bem parecido, alto, forte, moreno, com óculos de aros escuros e um porte distinto. Todos o tratavam por senhor doutor. De poucas falas tinha um ar distante e um pouco arrogante. Soube-se, mais tarde, tratar-se de um advogado, que na Beira ocupava o lugar de Juiz desembargador.
Devido a um problema com uma camisa mal passada, a Marietta foi chamada para resolver o problema. Por certo que este encontro deve ter causado uma boa impressão no Juiz que passou a chama-la sempre que queria qualquer coisa.
Vinha com frequência a LM e hospedava-se sempre no Hotel Girassol. A pouco e pouco através de outros hóspedes foi-se sabendo mais pormenores da vida do Sr. Juiz. De famílias ricas, devido a determinadas posições tomadas, tornara-se mal visto pela polícia política vendo-se obrigado a pedir transferência para Moçambique.
Casado, deixara a mulher na metrópole a acompanhar os filhos que estudavam na faculdade e os pais muitos idosos e doentes.
Por certo que da permanência deste senhor no referido Hotel terá nascido uma relação com a Marietta que a discrição de ambos não revelou.
Um dia a Marietta despediu-se do hotel sem apresentar qualquer desculpa e partiu, sem nada dizer, pelo que se lhe perdeu o rasto. A filha, entretanto, acabara o 5º. Ano e fora estudar para a África do Sul, como era muito vulgar na época.
Dois anos passados, um hóspede que habitual do Hotel Girassol, contou que a Marietta vivia na Beira com o Sr. Dr. Juiz. Para todos os que a conheciam foi motivo de admiração. Nos anos 50 a sociedade moçambicana era muito conservadora e estas situações não era bem vistas. Muitas pessoas, com boas colocações, tinham perdido o emprego ou foram transferidas para lugares distantes por motivo de divórcio ou conhecimento das chamadas situações de pecado.
A mulher do Dr. Juiz com os filhos formados e os pais enterrados, talvez sabedora do que se passava, veio viver com o marido.
O Sr. Juiz teve de arranjar casa para a Marietta, visitando-a com mais frequência que a decência permitia.
A mulher do Dr. Juiz através do Cardeal conseguiu que ela fosse corrida de Moçambique, o que na altura era possível fazer-se uma vez que ela era estrangeira.
O Dr. Juiz pediu transferência para LM, o que conseguiu devido ao prestígio que havia alcançado no desempenho das suas funções e colocou a Marietta, em Nelspruit uma cidade rural, Sul-africana a uns quilómetros da fronteira de Ressano Garcia.
Passaram a encontrar-se com regularidade, no Hotel de Komatipoort, na fronteira com Ressano Garcia.
Marietta nesta altura já teria os seus quarenta anos, contudo a sua beleza não sofrera uma beliscadura, pelo contrário a idade trouxera-lhe uma segurança de gestos, uma distinção de maneiras a que a frequência de bons salões de beleza e costureiros não era indiferente.
De quatro em quatro anos os funcionários tinham direito a uma licença graciosa. E o Dr. Juiz aproveitou a oportunidade para passear pela Europa a beleza da Marietta, ignorando por completo a mulher e os filhos.
As poucas pessoas que com eles conviviam contavam que o Dr. estava perdidamente apaixonado por ela com menos vinte anos que ele. O seu ar altivo e arrogante transformava-se por completo na sua presença. Marietta vestiu-se nas melhores casas de Paris e as suas bagagens ostentavam etiquetas dos mais afamados hotéis da Europa.
Vendo que a retirada da Marietta de Moçambique não resolvera o problema muito pelo contrário até parecia que a paixão mais se acentuara, instada pelos filhos, a mulher resolveu pedir o divórcio.
Conhecedor das leis e prevendo que isso acontecesse, o Juiz conseguira a pouco e pouco vender tudo o que os pais lhe deixaram em Ponte de Lima e não foi pouco e o que fora adquirindo na Beira e mais tarde em Lourenço Marques, estava no nome da Marietta.
O caso foi muito falado na altura. O meio era pequeno as pessoas conheciam-se todas e quando se soube, o juiz ficou muito mal visto. Para além da relação, pouco discreta, que mantinha com a Marietta, ser mal aceite por uma sociedade hipócrita e convencional em que o que era preciso era manter as aparências, a forma capciosa e premeditada como tinha retirado aos filhos o património que lhes devia caber, tornou-se tão escandalosa que, os filhos bem colocados e relacionados na Metrópole conseguiram que ele fosse transferido para Macau. Os antecedentes políticos do Juiz só vieram ajudar a tomada desta decisão.
Uma vez em Macau, desesperado e vendo que já poucos anos lhe restavam para se reformar começou a entrar em lobbies que se praticavam muito naquela colónia portuguesa. Longe da sua querida Marietta e com poucos amigos, tentou aumentar o espólio uma vez que depois de reformado não conseguiria manter o nível de vida que a Marietta agora exigia.
Quando o escândalo rebentou houve quem dissesse que só com uma denúncia aquilo poderia ter acontecido. Pode ser que sim pode ter sido apenas pouca sorte. Tantos antes já o tinham feito! A verdade é que a vida em Macau era de molde a uma pessoa perder-se, diziam. Ou se viciavam no jogo ou entravam em facilidades que, de repente, davam para o torto descobriam-se e era o fim.
E foi o fim do Dr. Juiz.
Após um julgamento breve a que as provas evidentes ajudaram, o Juiz foi condenado a dez anos de cadeia. Tinha sessenta anos, só sairia de lá aos setenta. Tentou entrar em contacto com a Marietta. Em vão. As cartas vinham todas devolvidas. Através do advogado procurou saber dela. Parecia ter-se eclipsado. O dinheiro que estava depositado na sua conta era ínfimo comparado com o que era acusado de ter recebido. Provavelmente teria sido colocado numa conta da Marietta e perdera-se-lhe o rasto.
O pouco dinheiro que lhe restava gastou-o em recursos e na tentativa de encontrar a Marietta.
O desgosto minou-lhe as forças e quando a amnistia concedida por ocasião do 25 de Abril, lhe perdoou o resto dos anos de cadeia, estava um velho alquebrado, só e destituído do que de mais importante um homem pode ter – o nome, a carreira e a família. Acho que não há qualquer ordem sequencial nestas três, pois são todas de igual importância e indispensáveis para o bom equilíbrio de um ser humano.
Voltou para a Metrópole.
A mulher que tanto sofrera, não teve coragem de lhe fechar a porta, contrariando a vontade dos filhos que não lhe perdoavam o que havia feito e a forma como destruíra a vida da mãe.
Aos setenta anos apareceu-lhe um cancro na próstata.
Foi operado.
Muito tarde porém.
A mulher acompanhou-o infatigável pelos corredores do hospital durante os tratamentos dolorosíssimos da quimioterapia e radioterapia. Faleceu passados oito meses. Cerca de um ano volvido morreu a mulher.
Da Marietta nunca mais se soube.
TAVIRA, Horta da Torre, 17.X.03
P.S.
Um colega do liceu, sabendo que faço colecção de postais costuma mandar-me sempre um, quando viaja. Actualmente, quase que posso dar a volta ao mundo olhando para os esses postais.
Ao agradecer-lhe o postal que me enviara de Megève, com a “Aiguille du Midi”, contou-me ter encontrado a Marietta.
Em Janeiro desse ano, numas férias nos Alpes para praticar um dos seus desportos favoritos – o ski – hospedou-se num hotel particular em Megève, recomendado por um amigo.
Esse hotel apenas dispõe de 12 quartos. Muito confortável, com um ar familiar, mas muito requintado. Quartos amplos decorados com muito gosto e um malão Louis Vuitton aos pés da cama. O pequeno-almoço, que pedira para lhe servirem no quarto, vinha num tabuleiro com loiça Villeroi & Boch e os guardanapos com bordado do mesmo desenho floral da loiça.
Francamente agradado com o requinte do hotel, dirigiu-se à recepção para fazer uns telefonemas. Atendeu-o uma senhora lindíssima que julgou reconhecer, mas de imediato não conseguia identificar.
Passado algum tempo recordou-se – era a Marietta do Hotel Girassol. Dirigiu-se-lhe cumprimentando-a pelo nome.
Com um sorriso encantador, a senhora respondeu:
- Marietta era a minha mãe.
Esquecera-se que a Marietta era mais velha que ele uns dez anos, pelo que era impossível ter agora cerca de trinta anos.
Pediu desculpa e contou-lhe como conhecera a mãe.
O seu avô que construíra o Hotel Girassol, costumava levar o neto com ele, ao fim da tarde, para tomar um refresco e cavaquear com o Mona de quem ficara amigo.
A filha da Marietta contara então que, quando a mãe saíra da África do Sul, numa digressão pela Europa, e sabendo que aquele hotel estava para trespasse, ficara com ele. Imprimira-lhe o seu cunho pessoal e, a pouco e pouco, foi reunindo um leque de clientes distintos e fiéis.
Hoje, o hotel só recebia os seus clientes ou alguém especialmente recomendado.
A filha da Marietta que, ao acabar os estudos na África do Sul, fora viver com a mãe ajudava-a a gerir o Hotel. A Marietta morrera, o ano passado.
Agora, pensava trespassar o Hotel. Madame Nadine Rothschild estava interessada e as negociações estavam bem encaminhadas.
Com a queda do Muro de Berlim queria ir para a sua cidade natal, a Roménia. O meu colega recomendou-lhe prudência pois viera há pouco dos países de Leste e a vida nesses países ainda estava muito difícil.
Com aquele sorriso encantador herdado da mãe e que destruíra a vida do Juiz, respondeu-lhe, num francês a que a sua pronúncia emprestava uma musicalidade especial:
«J’ai gardé de ma jeunesse assez l’esprit d’aventure pour sentir, sur le point de cette révélation, plus de curiosité que de peur; c’est quelque chose, après tout de pouvoir penser que, dans une semaine, un mois ou un année je pourrai être là pour aider mon pays. »