Autor do estudo "Soldados do Uganda em Cabo Delgado podem pôr mais fogo" diz à DW que o problema é que este apoio "não é direcionado ao Estado moçambicano", mas a milícias com base étnica. Isso poderá agravar o conflito.
O Governo moçambicano anunciou, recentemente, que quer "legalizar" as milícias designadas como "força local", que têm apoiado os militares no combate à insurgência em Cabo Delgado. Isto depois de, no final de abril, e durante uma visita ao Uganda, o Presidente moçambicano, Filipe Nyusi, ter confirmado que aquele país está a dar apoio logístico a estas "forças locais".
Agora, um estudo intitulado "Soldados do Uganda em Cabo Delgado podem pôr mais fogo", veio alertar para os perigos que este apoio pode representar para o país.
Em entrevista à DW, um dos autores do estudo, o investigador moçambicano Borges Nhamire, explica que o "apoio do Uganda [a Moçambique] em si não é problema". O problema é que o "apoio não é direcionado ao Estado moçambicano, mas a um grupo de milícias com base étnica" - neste caso, Makonde.
DW África: Uma das conclusões deste estudo é que o apoio às milícias por parte do Governo moçambicano pode contribuir para o agravar do conflito em Cabo Delgado. Em que medida?
Borges Nhamire (BN): O apoio não é direcionado ao Estado moçambicano. O Estado moçambicano é superior a qualquer distinção étnica, mas o apoio não é direcionado ao Estado moçambicano, é direcionado a um grupo de milícias. E esse grupo é formado com base étnica, é um grupo predominantemente étnico Makonde. E se este grupo recebe algum apoio estrangeiro, significa que vai ficar muito forte na sua relação com o Estado moçambicano. Na sua relação com outros grupos étnicos na região, pode ser superior e usar este poder até para exterminar os outros grupos. Esta dimensão étnica do conflito esteve sempre presente em Cabo Delgado.
DW África: Mas justificar-se-ia se o envio do apoio ugandês fosse para ajudar as autoridades moçambicanas e tropas da SADC e Ruanda?
BN: Sim, justificar-se-ia. Neste momento, todo o apoio é bem-vindo em contexto de combate ao terrorismo e extremismo violento. É por isso que temos em Moçambique militares enviados por diversos países africanos e europeus. O apoio do Uganda, em si, não é problema. O problema é que esse apoio não vem para o Estado moçambicano. Também devia ser coordenado com outras entidades continentais, como a União Africana, para se ter um comando unificado. Neste momento, em Cabo Delgado, cerca de sete distritos têm diferentes comandos - o comando da SADC, que por sua vez está subdividido em África do Sul, Tanzânia, Lesoto, Botswana, e depois há o comando do Ruanda, o comando das próprias Forças Armadas de Defesa de Moçambique e agora vai ter o comando do Uganda.
Isto mostra que não é correto por causa de muitos riscos, do que se chama de "fogo amigo". Mas também devido à experiência de outros países onde algumas dessas tropas estão presentes, como as tropas do Uganda na República Democrática do Congo ou a situação que se tem visto na Nigéria. Esses apoios a fações, ao invés de servirem para criar estabilidade, acabam servindo para adicionar mais combustível à fogueira.
DW África: No entanto, e numa altura em que faltam meios ao Governo, há analistas que dizem que a milícia tem ajudado a combater o extremismo nesta região. Sem esta "força local", como pode ser assegurada a segurança destas populações?
BN: Ter milícias, em si, apesar de problemático, não é necessariamente uma agressão. Agora, isso só acontece porque o Estado não tem capacidade de garantir segurança lá. A partir do momento em que o Estado consegue pôr lá a polícia, os meios convencionais de segurança, não se justifica a presença de uma polícia comunitária ou, neste caso, dessa força local. Agora, se o Presidente da República vai, no âmbito da política externa, para o exterior pedir ajuda, essa ajuda tem de ser para o Estado. Essa ajuda não pode ser para uma uma milícia, porque teoricamente o risco é essa milícia ficar muito mais forte até do que o próprio Estado e depois já não se submeter ao Estado.
DW África: Portanto, cabe ao próprio Estado rejeitar a ajuda do Uganda nesses termos…
BN: Claro. É isso que estamos a dizer, que o Estado moçambicano não pode aceitar esse apoio especial para a milícia. E depois temos de questionar também quais são os interesses do Uganda em apoiar a milícia. O que estamos a defender neste estudo é: havendo essa disponibilidade do Uganda para apoiar, que apoie o Estado moçambicano. Porque se o Estado moçambicano tiver força suficiente, resultado do apoio do Uganda e de outros países, pode ele mesmo garantir a segurança naquela região, sem necessitar de criação de uma força local.
A força local é um remendo na incapacidade do Estado moçambicano. Se tiver um apoio externo não pode vir para a força local, se não depois vem outro apoio de uma força exterior para apoiar os rebeldes. E depois, o que é que fica? Uma autêntica confusão. É esse o combustível que está a adicionar-se ao fogo.
DW – 25.05.2022