A propósito do 27 de Maio em Angola
A sra. Graça Machel acha que não damos a devida importância aos nossos heróis.
Resisto ao desafio e nesta sexta-feira, 27 de Maio, vou fora de portas revisitar 45 anos de um dos maiores massacres de que há memória no continente africano. Os protagonistas são na sua esmagadora maioria angolanos. Mas tenho dúvidas se é lícito limitar a fronteira e a nacionalidade destas mulheres e homens que morreram em nome de uma utopia. Os tais heróis que nunca foram presidentes de nada.
A Margarida Cardoso, uma cineasta que vive em Lisboa mas já viveu em Moçambique, que trouxe Lídia Jorge para a tela, fez um documentário sobre o 27 de Maio em Angola, o dia que assinala a maior purga de carácter ideológico em África. O leit motiv do documentário é o casal Sita Valles e Zé Van-Dunen que, conjuntamente com Nito Alves, ficaram associados a uma tentativa de golpe de Estado em Angola e a um movimento que ficou conhecido como o fraccionismo.
Os números oficiosos apontam para 30 mil mortos e desaparecidos. Margarida Cardoso, nas suas investigações, está convencida que os números podem rondar os 70 mil. Nas dezenas de visitas profissionais a Angola, esbarrei-me sempre com o fenómeno do “27 de Maio”. É difícil não encontrar famílias em Luanda que não tenham alguém que foi fuzilado, torturado ou desaparecido às mãos da DISA, o serviço equivalente ao SNASP em Moçambique.
Depois dos longos meses de terror, muitos fugiram para o exterior. Para Portugal, alguns para Moçambique, onde sempre levaram uma vida discreta. Como se carregassem um segredo pesado e difícil de compartilhar.
Não há um relato oficial de como morreu Sita e Zé Van-Dunen. Mas há testemunhos que falam do seu fuzilamento. O seu filho de tenra idade foi poupado à barbárie. Durante anos convivi com o irmão do Zé, o João Van-Dunen, entre Londres, Maputo e Luanda e a irmã, que me parece, continua a viver em Bruxelas. O João era um jornalista na BBC. Nunca falámos do “27 de Maio”.
O sobrinho cresceu com a Francisca (até há pouco ministra da Justiça em Portugal) e licenciou-se em Economia em Sussex, na Inglaterra. Trabalhou para o Ministério das Finanças em Maputo entre 2003-2004 e vivia sossegado na Rua de Kongwa. Também era João mas chamavam-lhe “Che”.
Nos dias de hoje fica difícil falar de esquerda e direita, e sobretudo situar os movimentos alternativos à ortodoxia do MPLA e que, claramente se posicionavam à sua esquerda. Eram tempos agitados, do poder popular, dos comités Amílcar Cabral, dos comités Hoji ya Henda.
Para além da Unita, da FNLA, dos sul-africanos e dos mercenários, como o Daniel Roxo, que saiu do Niassa para morrer debaixo de um blindado sul-africano, pouco depois de atravessar o rio Cubango que faz fronteira com a Namíbia.
E havia também o PCP (Partido Comunista Português), de onde vinha a Sita e que procurava a todo o custa fixar ideologicamente o MPLA. Eu sei que é uma visão disputada, mas é assim que vejo as confrontações no tempo. Como as houve também em Moçambique, discretamente. Lembro-me de Samora Machel dizer que na Comissão Nacional do Plano, não acreditavam no socialismo em Moçambique porque “não fazia neve como na Sibéria”.
Os números das purgas em Moçambique estão longe de serem contabilizados. Mas não me parece que as dissidências à esquerda da Frelimo foram parar aos campos de reeducação ou executadas sumariamente. Claro que há o episódio Luis de Brito enviado ao Niassa, depois da confrontação na UEM (Universidade Eduardo Mondlane) em que os apparatchik da RDA, que se movimentavam bem na sede da Frelimo, terem perdido o controlo da projectada Faculdade de Marxismo-Leninismo para Aquino de Bragança, Ruth First e os académicos que tinham descido de Makerere e Dar es Salaam. Há o espalhafato de Raposo Pereira, de livraria em livraria, apreendendo todos os livros que se situassem à esquerda do Manual de Economia Política da Academia de Ciências da URSS em quatro volumes. E as “bicadas” à esquerda de Sérgio Vieira pela não compreensão do Acordo de Nkomati de 1984. E ainda um dia destes vamos aprofundar o que aconteceu na UFICS.
Porque escrevo uma crónica, levezinha, continuo a pensar que Samora Machel gostava dos “esquerdistas” e entretinha longas conversas em privado, sobre “temas à esquerda”, suficientemente subversivos para que fossem captados pelos radares de Leste e das “democracias populares” asiáticas. Continuo a pensar que, para além das “danças de cadeiras” promovidas regularmente entre a reduzida imprensa oficial da época, nada de muito dramático aconteceu sob o “manto protecionista” de Samora. Mesmo que Carlos Cardoso tenha ido parar à Machava por contradições entre a Inteligência Militar e o SNASP.
Nos turbulentos anos de 77/78, com os ecos do fraccionismo angolano em fundo, chamei social-democrata a Agostinho Neto, num daqueles debates inconsequentes de redacção. Uma heresia que, no decifrar a preto e branco da crítica, foi reduzida a simpatias por Jonas Savimbi. A Sita Valles, o Zé Van-Dunen e os seus companheiros, dramaticamente, não estavam por perto para me defenderem.
O Benjamim Faduco, de quem guardo esta gratidão eterna, mesmo admoestado que na revolução a verdade é relativa, manteve a contextualização dos factos.
Não havia nenhum Savimbi na fotografia. Só Neto que era social-democrata.
E fraco.
FERNANDO LIMA
SAVANA – 27.05.2022