Miguel de Sousa Tavares
Life is a story told by an idiot” W. Shakespeare
O que levou os políticos da Finlândia e Suécia a pedirem a adesão à NATO não foi a invasão da Ucrânia pela Rússia e o medo de verem isso replicado nas suas fronteiras, mas sim o falhanço da invasão da Ucrânia pela Rússia. Se essa invasão tem sido um sucesso militar para Moscovo, como era de prever, nem a Finlândia nem a Suécia se teriam movido da sua zona de conforto, de neutralidade, onde viveram pacificamente desde o pós-guerra. Mas quando, em meados de Abril, viram o sucessor do Exército Vermelho a patinar na Ucrânia, incapaz de conquistar as grandes cidades e, sobretudo, batido em armamento, em tecnologia de informação e em treino de combate pela ajuda decisiva que a NATO forneceu e fornece à Ucrânia, os dois países nórdicos começaram a pensar que, tal como a Ucrânia, também eles, beneficiando da mesma ajuda, estariam melhor defendidos sob o escudo da NATO do que sob a política de “finlandização” ou neutralidade das suas políticas externas. Afinal, o urso vermelho não passava de um urso de papel. A menos, é claro, que o urso não se lembre de lançar mão do argumento nuclear...
Porém, basta olharmos para os mapas dos sucessivos alargamentos da NATO na Europa para percebermos como a Rússia tinha razão ao ver ali um movimento de alastramento unicamente destinado a cercá-la por todos os lados. A extraordinária hipótese de “peace in our life time” de que falava Chamberlain 50 anos antes e que milagrosamente se materializara com a derrocada da URSS e da Cortina de Ferro foi deitada a perder pela voragem cega da visão expansionista da NATO e dos fabricantes de armas que a sustentam e se sustentam dela. Como dizia Sartre, mas a despropósito, daqui não saio e daqui ninguém me tira.
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Por força da memória de 1939 e dos 1340 km de fronteira com a Rússia, a Finlândia mantém um desproporcionado Exército de 350 mil efectivos e outros tantos reservistas, num país com metade da população de Portugal. Antes de a aventura de Putin na Ucrânia ter começado a patinar à vista de todos, consumando um erro estratégico e político que ficará para a história, 30% dos finlandeses eram a favor da adesão à NATO: hoje são 70%. Já o caso da Suécia é diferente: com o dobro da população finlandesa, a Suécia tem um décimo dos seus efectivos militares. A neutralidade entre os dois blocos da Guerra Fria não foi apenas uma decisão de política de defesa, mas também de política externa, determinada por razões ideológicas, intrinsecamente ligadas ao SPD de Olaf Palme e que deu à Suécia um prestígio internacional que agora ficará reduzido a coisa nenhuma. E pior para um povo orgulhoso da sua diferença e que está dividido nesta questão: tamanha era a pressa que nem sequer o consultaram.
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Todavia, o aliado-incómodo Erdogan, o ditador-amigo da Turquia, ameaça estragar a adesão dos dois nórdicos à NATO. É para levar a sério? Não, não é. O novo sultão otomano é tão democrata e recomendável quanto Putin: trata o Estado de direito, os direitos individuais, os adversários políticos e a imprensa que pretende ser independente com o mesmo nulo respeito que o novo czar russo. Porém, é eterno candidato à UE e membro determinante da NATO, cujo flanco sul e leste preenche, e mantém relações “curiosas” com o Kremlin. Mas Erdogan é subornável, embora o preço a pagar seja moralmente abjecto. Trata-se de sacrificar os curdos — uma vez mais. Os curdos, relembra-se, são cerca de 30 milhões de apátridas dispersos por seis países do Médio Oriente, definidos em todas as enciclopédias como “a maior nação sem Estado do mundo”.Várias vezes lhes prometerem um Estado e todas as promessas foram traídas — sobretudo pelo Ocidente. De fé islâmica, foram perseguidos e massacrados por todos os extremismos islâmicos nos países onde estão e a todos deram luta: foram alvo de uma “guerra santa” no Irão, decretada por Khomeini, dizimados por Sadam Hussein no Iraque, atacados com armas químicas na Síria do assassino Assad, aliado de Putin, e perseguidos sem tréguas pelo fanático Erdogan na Turquia, onde vivem 15 milhões de curdos, constituindo 20% da população turca. Combateram o ISIS no Iraque e o Daesh na Síria, onde Obama lhes prometeu uma pátria em troca e onde, combatendo à frente e ao lado dos marines, salvaram milhares de vidas americanas, para depois serem abandonados por Trump às represálias dos turcos, perante a revolta silenciada dos próprios comandantes americanos. O seu Exército, o único que verdadeiramente combateu os terroristas islâmicos, tinha companhias chefiadas por mulheres diplomadas em Londres, em Paris, nos Estados Unidos. Combatendo por uma pátria sempre prometida e sempre atraiçoada.
Para Erdogan, toda esta gente são “terroristas”, membros do PKK: basta sonhar com um Curdistão para se ser terrorista. E acontece que alguns deles se refugiaram na Finlândia e, sobretudo, na Suécia, que, honrando a suas tradições, os acolheram como refugiados políticos — como outrora acolheram os resistentes à ditadura do Estado Novo ou os dirigentes africanos das colónias portuguesas. Quatro dos refugiados curdos são até deputados no Parlamento sueco, supremo insulto para Erdogan. Ele exige a extradição de 30 e tal deles para as prisões turcas em troca de não se opor à entrada da Finlândia e Suécia na NATO. Isso, provavelmente, não obterá, mas obterá a promessa de que a porta se fechará doravante a novos pedidos de asilo político de curdos. E, para facilitar ainda mais as coisas, Biden já levantou um embargo de venda de armas à Turquia (em vigor, vejam a ironia, devido às relações privilegiadas de Erdogan com a Rússia) e pediu ao Congresso a aprovação de um pacote de “ajuda militar” — isto é, venda de armas (aviões F-16 e mísseis) — à Turquia e para ser usado contra os curdos. Tudo vai acabar com palmadinhas nas costas e juras de amor para sempre. Todos, com excepção de Vladimir Putin, concordam com o direito da Ucrânia à sua soberania e à integridade territorial da sua pátria — que, todavia, só existe há 30 anos. Já quanto aos curdos e ao prometido Curdistão, pelo qual esperam há séculos, não há pressa, nem amigos, nem aliados, nem palavras dadas. Digam-me lá que tudo isto não é maravilhoso e que faz todo o sentido? Em tempo de guerra, dizem, não se limpam armas. Limpam-se consciências.
O que levou os políticos da Finlândia e Suécia a pedirem a adesão à NATO não foi a invasão da Ucrânia pela Rússia e o medo de verem isso replicado nas suas fronteiras, mas sim o falhanço da invasão da Ucrânia pela Rússia
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Nós, porém, estamos bem. Votamos a tudo sim, o que não nos custa nada. Ajuda humanitária à Ucrânia? 1,1 milhões de euros: o custo de um T1 no centro de Lisboa. Participação na mobilização extra de forças da NATO? Claro: 165 tropas para a Roménia e, lá para Setembro, talvez a única das cinco fragatas em condições de navegar (e que, relembre-se, foram compradas para combater submarinos soviéticos no Atlântico Norte quando já não havia nem submarinos deles nem mesmo União Soviética) possa finalmente zarpar para algures, uma vez estabelecidos todos os subsídios da tripulação. Mas, como insistiu o Presidente e assentiu (não muito convicto, é certo) o PM, vamos investir mais nas Forças Armadas, como convém aos tempos que se vivem. Para variar, vai ser estudado um novo conceito estratégico de Defesa Nacional, que é sempre um fantástico exercício de banalidades com o condão de, uma vez pronto, já estar desactualizado. No essencial, tudo resumido e Ucrânia bem meditada, vai-se concluir pela urgência nas promoções do pessoal e uma recomendação dos chefes para restabelecer o SMO, pois faltam soldados para o básico: limpar os quartéis, cozinhar as refeições, conduzir as viaturas, fazer sentinela aos expostos paióis. E mais umas quantas compras de material a americanos ou franceses, com os habituais negócios escusos de comissões, para garantir os indispensáveis 2% do PIB em despesas militares que o clube NATO exige.
Mas se o Estado poupa na ajuda à Ucrânia, a sociedade civil não. Os portugueses gostam de receber, é uma qualidade nossa, genuína. Até agora, recebemos 35 mil refugiados ucranianos. Não é muito, comparado com países vizinhos da Ucrânia, mas se não recebemos mais é porque não quiseram vir mais. Em contrapartida, o grande “amigo” da Ucrânia, os Estados Unidos, graças a cuja “ajuda” a Ucrânia tem conseguido humilhar os soldados de Putin, já gastou ou vai gastar para cima de 40 mil milhões de euros de “ajuda militar” ao país de Zelensky. Parte da “ajuda” será paga pela Ucrânia, outra parte pela NATO e a maior parte, espero, pelos contribuintes americanos, via Pentágono. De qualquer maneira, um negócio fabuloso para a Lockeed Martin, a Northrop Grumman ou a General Dynamics. Porém, para além das armas, Joe Biden anunciou que os Estados Unidos também se iriam mobilizar no campo humanitário: estariam dispostos a acolher até 100 mil refugiados ucranianos. É imenso? Não, é ridículo. Se considerarmos que os EUA têm 27 vezes a população portuguesa e que nós já recebemos 35 mil ucranianos, eles deveriam receber 945 mil. Mas duvido que até os 100 mil venham a receber. Vender armas é muito mais rentável. Por isso, e saudando a entrada de suecos e finlandeses na NATO, ele já tratou de anunciar que podem estar tranquilos, porque nos planos dos Estados Unidos e da NATO passa a estar a militarização em força do Báltico. Foi a melhor resposta que encontrou à reacção moderada de Putin, dizendo que nada de substancial se alterava desde que, justamente, o Báltico não se transformasse num novo território de armas apontadas à Rússia.
Eu sei, tudo isto são pormenores. Tudo isto é chato, tudo isto obriga a pensar, tudo isto é triste. Slavia Ucrânia!, e não se pensa mais no assunto.
EXPRESSO(Lisboa) – 20.05.2022