A 18 de Julho de 1987, há 35 anos, aconteceu na terra dos meus pais, Homoíne, Inhambane, o maior massacre da história de Moçambique independente: Massacre de Homoíne.
Ainda não tinha ainda nascido, mas os meus primos o Felisberto, o Hilário, o Lucas e o Venâncio já tinham nascido; aliás, tinham mesmo nascido para serem lavra desse massacre. Eram pastores e o massacre engoliu-lhes com o gado. Até hoje não se sabe nada deles. Claro que, às vezes, esbarro-me com eles na memória da minha mãe pastando gado; eles tão limpos, sem sinal de morte, com varas pondo na ordem o gado, felizes por continuarem vivos na memória da minha mãe e saudando-me “prazer, primo, tu que nasceste depois de 1987”.
Tenho uma fotografia, a preto e branco, de tios, primos e avôs, em pé e sentados. E cada um deles com um enfeite de cruz encarnada à testa e nas costas da fotografia está a legenda: “todos fuzilados em 1987”. Mais de 20 defuntos numa única fotografia, mais de 20 familiares meus que hoje borbulham na Vala Comum de Homoíne.
É como se aquela fotografia fosse uma pequena sucursal do Massacre de Homoíne dentro de casa. Sobre a Vala Comum de Homoíne e os mortos escreveu Eduardo White no seu livro “Homoíne”: os nossos mortos são muitos, / são muitos os nossos mortos/ dentro das valas comuns”.
Em 1987 ainda não tinha nascido, mas já tinha nascido a minha tia-avó que sobreviveu ao massacre. Viu o marido e os filhos fuzilados como porcos nas lâminas de um matadouro. Ela, escondida numa latrina, filmou sem pestanejar o marido e os filhos mortos aos bochechos. De certeza uma gota de lágrima escureceu a câmara, por um momento, de filmagem, mas não parou a filmagem…
A minha tia-avó, hoje cega e surda, quando se lembra do massacre afasta por uns minutinhos a cortina da cegueira, brota uma, duas lágrimas e acalma-se saltando quase todos os episódios dessa filmagem engolindo um enorme soluço de luto. Hoje é surda, mas sempre nos confessa, como se fossemos padres, o sino das armas que não cessa de dobrar no píncaro da sua surdez.
Dizia que no raio do ano de 1987, ainda não tinha nascido; talvez teria visto, pelo menos, a tia Berta que foi arrastada com suas capulanas de curandeirismo no mercado de Homoíne, misturada com doentes do centro de saúde e todos benzidos por balas.