Por Carlos Nuno Castel-Branco
O protesto de quem se acha injustiçado por ainda não ter comido o que queria, ou por não ter recebido o devido reconhecimento pelo mérito de estar a comer bem?
Ouvi o nosso mais velho (para dizer a verdade, alguns mais velhos já passaram aquele limite quando é melhor deixar, porque é embaraçoso) falando sobre unidade nacional e corrupção para a organização da juventude da Frelimo, por ocasião dos 60 anos da Frelimo e no contexto da preparação do 12 Congresso daquele partido.
Numa parte do seu discurso, fala de corrupção e tribalismo, dizendo que ficou chocado quando verificou que no mediático julgamento da tenda (dívidas ilícitas) quase todos os envolvidos eram do Sul (com um pouco de Chuabos repescados); depois pergunta onde estão os outros. É difícil entender com clareza o que ele quis dizer, mas avanço quatro hipóteses:
1) será que ele quis dizer que os do centro e do norte do país estão zangados porque foram discriminados por não terem tido igual acesso à corrupção, como os do sul?
2) será que ele quis dizer que os do centro e do norte estão zangados porque foram descriminados por não lhes ter sido reconhecido o mérito de serem tão corruptos como os do Sul e, por consequência, não terem estado devidamente representandos entre os acusados lá na tenda?
3) será que ele quis dizer que os do centro e do norte estão zangados com os do sul por estes serem corruptos e estão orgulhosos por não o serem?
4) será que ele quis dizer que "o poder deve continuar no norte não corrupto", significando (i) ou terceiro mandato para Nyusi (ii) ou um novo candidato do norte, como imperativos nacionais da luta contra a corrupção?
Venha o diabo e escolha a hipótese tribalista que mais lhe agradar.
Mas seria bom que, ao fazê-lo, reconhecesse que:
1) mais provavelmente a região de origem e o grupo étnico não têm qualquer correlação, muito menos uma relação de causalidade, com corrupção.
2) mais provavelmente, há muito mais proximidade e afinidade entre interesses e práticas das elites de seja qual for a região ou grupo étnico, do que entre estas elites e as classes trabalhadoras dessas regiões e grupos étnicos. Quer dizer, afirmar que todos os changanas, os rongas, os "manhambanas", os chuabos são corruptos é tão falso como afirmar que as elites makondes, macuas, ajaus e desses todos "outros" mencionados pelo velho General não estejam ligadas à corrupção.
3) A corrupção, seja qual for a sua escala, extensão, intensidade e forma, é uma das características dominantes do modo de acumulação capitalista. Todos os grupos burgueses emergentes, com aspirações oligárquicas, são corruptos e criminosos sejam eles de que região ou etnia forem, e não podem ser confundidos com os camponeses a quem esses grupos emergentes expropriam, com os garimpeiros a quem assassinam, com os trabalhadores a quem recrutam em condições de precariedade extrema, em moldes cada vez mais casuais e informais, com as comunidades a quem cabe toda a responsabilidade pela reprodução social da força de trabalho e a quem se exige que assuma a totalidade dos custos dessa reprodução social, em condições cada vez mais precárias, com o povo a quem massacram, empobrecem e alienam por delapidarem o erário público e por matarem a esperança.
4) os bandidos do julgamento da tenda não representavam o sul e os chuabos, mas as classes intermédias de executivos servidores das oligarquias emergentes de que o velho General faz parte. Do mesmo modo, o mais velho não representa os makondes, nem os macuas, nem todos os outros não do sul + chuabos, mas apenas é um dos maiores símbolos dessas oligarquias emergentes, que não têm tribo nem região, mas usam a tribo e a região para legitimarem as suas ambições e poder.
5) também não deve esquecer que o norte estaria melhor representado na tenda da BO se o Ministro da Defesa do último governo do PR Guebuza tivesse no mínimo sido chamado como declarante, se não mesmo como acusado ao lado do DG do Sise e dos outros membros do comando conjunto e do comando operativo, incluindo o anterior PR.
O nosso General, o mais velho, está a perder pontaria, ou estará a apontar para alvos ainda não claros para todos?
Numa outra passagem da sua intervenção, o General afirma que muitos jovens hoje trabalham por ambição pessoal, para serem ricos - têm muitos carros e mansões mas não fizeram nada para merecerem isso (ele estava a dirigir-se aos membros da organização da juventude da Frelimo). Continuou, o nosso mais velho, dizendo que a geração dele resistiu contra o colonialismo sem pensar em projectos ou ambições pessoais, afirmando um projecto colectivo.
É muito importante que alguém da estatura histórica ímpar do nosso General denuncie o que se passa no seio da elite da juventude da Frelimo, mas há três outros aspectos a que importa prestar atenção: 1) por que aconteceu isso, de onde vem o exemplo e como é possível que isto tenha acontecido? Qual é a explicação, General? 2) nesta óptica de análise do nosso mais velho, onde e como se situa a recente decisão do governo liderado pelo PR Nyusi de atribuir prioridade nos concursos públicos ao recrutamento de descendentes dos veteranos da luta de libertação nacional? O que fizeram estes decentes para merecerem isso? 3) não se devem confundir todos os jovens com as elites da organização juvenil que estão altamente correlacionadas com as elites históricas da Frelimo. A grande maioria da juventude moçambicana é pobre e desempregada ou sub-empregada. O pequeníssimo grupo de milionários improdutivos dessa juventude é formado pelos filhos de outras tantas personalidades oriundas exactamente da geração histórica do nosso General e da sua posição de classe dominante e expropriadora na sociedade, independentemente da região ou da tribo.
O discurso do nosso respeitado General deixou-me uma última dúvida - será que não tem espelho em casa? É que o nosso General, famoso pelas inúmeras afirmações fora do cardápio oficial cuidadosamente ensaiado, é o autor legitimo e reconhecido das seguintes frases:
"Não lutei para ser pobre".
"Lutei, logo tenho o direito de ser rico"
"Somos humanos e não somos santos, logo a corrupção não vai acabar"
"Não temos culpa de o colonialismo ter atrasado o nosso desenvolvimento histórico; a acumulação privada que os outros fizeram há 100 ou 200 anos estamos nós a fazer agora. Eles já foram tiranos. Agora é a nossa vez"
Etc.
Estas e outras frases, do nosso General, foram ditas sobre um pano de fundo que é um País com 20 milhões de pobres e com um dos mais altos níveis de desigualdade na distribuição do rendimento nacional no mundo. Um país onde se cantam ossanas ao gás natural, ao carvão mineral, aos rubis, ao ouro, às areias pesadas, e onde se expropriam e matam pessoas por isso; onde se privatizou a segurança e a defesa nacionais; onde a defesa das águas territoriais e das riquezas marinhas é pretexto para delapidar o Estado, e a soberania nacional é uma palavra oca que serve como cortina de fumo para esconder o crime.
Se o nosso mais velho tivesse a oportunidade de ver-se ao espelho, certamente reconheceria em si, e no seu grupo social, os mesmos "desvios" que ele critica nas elites da juventude da Frelimo - não é de admirar, pois, afinal, filho de peixe sabe nadar. Aí poderia começar a entender melhor essas elites e as ambições daqueles que ainda não são elites. Ver-se ao espelho, ter consciência de si próprio e da sua própria posição, prática e consciência sociais, é um exercício muito saudável.
O que podemos aprender daqui?
Acumulação de riqueza num polo é, ao mesmo tempo, acumulação de pobreza, miséria, agonia, escravatura, ignorância, brutalidade, degradação mental e alienação no polo oposto. Alguma coisa realmente podre deve existir na essência de um sistema social que aumenta geometrica e cumulativamente a sua riqueza sem no entanto diminuir a sua miséria.
O capital tem horror à ausência de lucro. Quando o capital fareja o lucro torna-se ousado. A 20% fica entusiasmado. A 50% é temerário. A 100% enlouquece à luz de todas as leis humanas. A 300% não recua perante nenhum crime.
A desvalorização do mundo humano aumenta em proporção directa com a valorização do mundo das coisas.
Quando percebermos isto, quando isto ficar claro para todos, será fácil entender que a alternativa terá de ser socialista, e será mais claro para todos o que significa a luta continua.
PS: para o leitor que ainda não tenha tido acesso aos mais mediáticos trechos do discurso do nosso histórico e estimado mais velho, aqui ficam alguns links úteis.
https://www.facebook.com/1186731331/posts/10224939737019122/?sfnsn=wa