Por: Tomás Vieira Mário
Aqueles que eram adultos na década de 1980 lembram-se de quão difícil era a vida, sobretudo no período de 1985 a 1990.
A partir sobretudo de 1983, a guerra e a fome estavam generalizadas. A cidade de Maputo, em particular, estava sitiada e asfixiada.
Por volta de 1985 já andávamos silenciosos. Não havia mais nada para dizer. O barco tinha, realmente, encalhado, como escrevera, na altura, o Álvaro Belo Marques.
A guerra brincava connosco às escondidas aqui no Chiango; aqui no Bairro da Liberdade.
Corriam boatos de que D. Alexandre Maria dos Santos, Arcebispo de Maputo, tinha decidido ir pernoitar na Catembe, para prevenir um ataque de grande envergadura, da Renamo.
No meio deste clima lúgubre, há uma notícia inusitada: vai haver um espetáculo musical na Praça da Independência, ali em frente ao edifício do Conselho Municipal de Maputo!
O espetáculo vai ser promovido pela Organização da Juventude Moçambicana (OJM).
Festival musical?! Não queríamos acreditar, pois era algo totalmente longe das nossas mentes, de tão esfomeados! Mas o espetáculo aconteceu, de facto.
Estavam no cartaz músicos como o Hortêncio, o Wazimbo, a Mingas…o Hokolokwe…Enfim…alguma lufada de ar fresco, no enorme sufoco de uma cidade frequentemente deixada às escuras…
Mas, mal o espetáculo tinha começado e…somos surpreendidos com uma notícia absolutamente inesperada: estava a chegar ao local o Presidente Samora Machel!
Em reacção ao anúncio, feito pelo Secretário-geral da OJM, Zacarias Kupela, ouviu-se um espontâneo, mas forte “ahhhhhhh!”. Não vinha aproposito! Não tínhamos sido avisados, antes. Provavelmente, muitos não teriam ido ao espetáculo!
Mas já ninguém podia abandonar o local: militares armados tinham bloqueado qualquer saída.
No seu estilo único, Samora Machel, içado sobre o estrado onde os músicos actuavam, deu aqueles clássicos três “Viva a Frelimo que une e organiza o povo”.
Poucos lhe responderam. Muito poucos. Parecia termos sido enganados; que o espectáculo era apenas um engodo, uma isca, para nos "apanhar"...
A seguir o SJ da OJM tomou a palavra, para contextualizar o espetáculo, e isto mais aquilo.
Na volta ao microfone, Samora Machel entoou uma das canções então muito populares: “Khanimambo Frelimo…”.
Ouvimos, pelas poderosas colunas de som instaladas na Praça, uma multidão respondendo energicamente à chamada musical do Presidente: “Khanimambo, Khanimambo Frelimo….”
A multidão cantava, cantava e cantava, acompanhando o Presidente. Perplexos, olhávamo-nos uns aos outros, por não entender aonde estava essa multidão cujas vozes enchiam a Praça da Independência….
Porque não eramos nós, jovens ali aglomerados, à espera do espetáculo musical, quem estava a cantar! Não, não eramos nós!
Nós não queríamos cantar.
Nós não estávamos à espera do Presidente. Na verdade, não queríamos ouvi-lo! Pelo menos não ali e naquele dia! Nós apenas queríamos ouvir música. Não queríamos mais nada!
Eu, que era jornalista da Radio Moçambique, soube imediatamente quem esteve a cantar, na Praça da Independência: vozes gravadas de antigos comícios, muito concorridos, que a RM tocou, em bobines, ali mesmo, para “salvar” um encontro mal sucedido, entre o Presidente e os jovens. Alguém tinha já calculado o que poderia suceder...
Tal era, então, o estado de espírito do povo. Como está, hoje, o estado de espírito do povo?