O estadista da Guerra Fria, com 99 anos, fala sobre Putin, a China e o novo momento de perigo que atravessamos. "Estamos a entrar num período muito difícil", alerta
TEXTO NIALL FERGUSON
HISTORIADOR, INVESTIGADOR PRINCIPAL DA HOOVER INSTITUTION, AUTOR DE “KISSINGER, 1923-1968: O IDEALISTA”. O SEGUNDO VOLUME SERÁ CONCLUÍDO EM 2023
Henry Kissinger fez 99 anos a 27 de maio. Nascido na Alemanha no auge da hiperinflação de Weimar, ainda não tinha dez anos quando Hitler chegou ao poder e com apenas 15 anos desembarcou como refugiado com a sua família na cidade de Nova Iorque. De alguma forma, é quase surpreendente que este antigo secretário de Estado americano e gigante da geopolítica tenha cessado funções há 45 anos.
A caminho de um século de vida, Kissinger não perdeu nenhum do poder de fogo intelectual que o distinguiu de outros professores e praticantes de política externa da sua geração e das gerações seguintes. No tempo que eu demorei a escrever o segundo volume da sua biografia, Kissinger publicou não um, mas dois livros — o primeiro, em coautoria com o antigo CEO da Google, Eric Schmidt, e o informático Daniel Huttenlocher, é sobre inteligência artificial, e o segundo é uma coleção de seis estudos de casos biográficos sobre liderança.
Encontrámo-nos no seu retiro rural, nos bosques do Connecticut, onde ele e a mulher, Nancy, passam a maior parte do seu tempo desde o início da covid. A pandemia trouxe-lhes um lado bom. Foi a primeira vez em 48 anos de casamento que o compulsivamente itinerante Dr. Kissinger foi forçado a parar. Afastado das tentações dos restaurantes de Manhattan e dos banquetes de Pequim, perdeu alguns quilos. Embora ande com uma bengala, dependa de um aparelho auditivo e fale lentamente naquele inconfundível timbre barítono, a sua mente está tão aguçada como sempre.
Kissinger também não perdeu o seu talento para enfurecer os professores liberais e progressistas nem ‘acordar’ os estudantes que dominam Harvard, a universidade onde construiu a sua reputação de académico e intelectual público nos anos 50 e 60.
Todos os secretários de Estado e conselheiros de segurança nacional (o primeiro posto que ocupou no governo) tiveram que escolher entre uma má opção e outra pior. No ano passado, Antony Blinken e Jake Sullivan, que detêm atualmente essas posições, abandonaram o povo do Afeganistão à sua sorte com os talibãs e este ano estão a despejar dezenas de milhares de milhões de dólares em armamento na zona de guerra que é a Ucrânia. De alguma forma, essas ações não provocam o mesmo ataque que Kissinger sofreu ao longo dos anos pelo seu papel em eventos como a Guerra do Vietname (uma quantidade significativa de críticas também veio da direita, embora por razões muito diferentes)
Nada pode ilustrar melhor a sua capacidade de enfurecer tanto a esquerda como a direita do que a controvérsia desencadeada pelo seu breve discurso no Fórum Económico Mundial, em Davos, no dia 23 de maio. “Henry Kissinger — A Ucrânia deve dar território à Rússia” era a manchete do “Telegraph”, despertando um número quase igual de tweets enfurecidos de progressistas que adicionaram as cores azul e amarelo da Ucrânia à versão mais recente da bandeira do orgulho e de neoconservadores que clamam por uma vitória ucraniana e mudança de regime em Moscovo. Numa resposta assustadora, o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, acusou Kissinger de favorecer o apaziguamento da Rússia fascista, ao estilo de 1938.
A coisa mais estranha de toda essa comoção foi que o estadista não disse nada daquilo. Argumentando que alguma espécie de paz deve eventualmente ser negociada, declarou simplesmente que “a linha divisória [entre a Ucrânia e a Rússia] deveria voltar ao statu quo anterior” — ou seja, à situação antes de 24 de fevereiro, quando partes de Donetsk e Luhansk estavam sob o controlo de separatistas pró-Moscovo e a Crimeia fazia parte da Rússia, como acontece desde 2014. Foi isso que o próprio Zelensky disse em mais de uma ocasião, embora alguns porta-vozes ucranianos tenham defendido recentemente o regresso às fronteiras anteriores a 2014.
Tais equívocos não são novidade para Kissinger. Quando estava a tentar persuadir Barack Obama a sair do Afeganistão, o vice-presidente, Joe Biden, traçou uma analogia infeliz com o desacreditado antigo Presidente dos EUA, Richard Nixon. “Temos que estar de saída”, disse ao veterano diplomata Richard Holbrooke, “temos de fazer o que fizemos no Vietname.” Holbrooke, representante especial de Obama para o Afeganistão e Paquistão, respondeu: “Pensava que tínhamos uma certa obrigação para com as pessoas que confiaram em nós.” A resposta de Biden foi reveladora: “Que se f...”, disse, supostamente, a Holbrooke. “Não temos de nos preocupar com isso. Fizemos o mesmo no Vietname. E Nixon e Kissinger não tiveram problemas.”
No entanto, a realidade foi, mais uma vez, bastante diferente. Em 1969, Nixon e Kissinger rejeitaram completamente a ideia de abandonar o Vietname do Sul à sua sorte, à medida que os manifestantes antiguerra os forçavam a isso. Em vez de sair e fugir, procuraram alcançar uma “paz com honra”. A sua estratégia de “vietnamização” foi, na verdade, uma versão do que os Estados Unidos estão a fazer na Ucrânia hoje: fornecer as armas para que o país possa lutar para defender a sua independência, em vez de dependerem das tropas americanas no terreno.
Pergunto se os EUA estão hoje mais divididos do que na altura do Vietname. “Sim, infinitamente mais”, diz.
Os tipos de Harvard e Yale espumam ainda mais quando veem Nixon como um dos seis exemplos na liderança de Kissinger, ao mesmo nível de Konrad Adenauer, Charles de Gaulle, o ex-Presidente egípcio Anwar Sadat, o primeiro primeiro-ministro de Singapura, Lee Kuan Yew, e Margaret Thatcher (cuja inclusão fará os tipos de Oxford e Cambridge espumar da mesma maneira).
Pergunto-lhe porque é que Nixon — o único Presidente forçado a demitir-se — merece um capítulo à parte num livro sobre a liderança. Não é um estudo de caso em como não liderar? Kissinger começa com o veredicto sucinto sobre Watergate fornecido por Bryce Harlow, o experiente operacional de Washington, que era o homem de ligação de Nixon com o Congresso: “Algum tolo maldito entrou na Sala Oval e fez o que lhe disseram para fazer” — ou seja, alguém na Casa Branca levou Nixon demasiado à letra.
“Regra geral”, diz Kissinger, “o princípio político dos assistentes deve ser o de não ficar preso a declarações emocionais [sobre] coisas que sabemos que não diriam se pensassem um pouco mais”. Houve muitas ocasiões em que, no calor do momento, ou para impressionar a companhia presente, Nixon dava ordens verbais extremadas. O ex-secretário de Estado aprendeu rapidamente a não agir cada vez que o Presidente lhe dava a ordem de “rebentar” com alguém.
“Se olharmos para Watergate”, argumenta, “foi realmente uma sucessão de transgressões” — começando pelas invasões à sede do Comité Nacional do Partido Democrático rival, ordenadas pela comissão da campanha para reeleger Nixon em 1972. Essas transgressões foram “reunidas numa investigação. Na altura pensei, como agora, que eram ações censuráveis; mas não exigiam a retirada do cargo”.
Do ponto de vista de Kissinger, Watergate foi um desastre porque destruiu a engenhosa estratégia de política externa que ele e Nixon tinham concebido para reforçar a posição dos Estados Unidos, que estavam efetivamente a perder a Guerra Fria quando ambos entraram em funções em janeiro de 1969.
“Tínhamos um desígnio grandioso”, recorda. “[Nixon] queria acabar com a Guerra do Vietname de forma digna... Queria dar à aliança atlântica uma nova direção estratégica. E, acima de tudo, queria evitar um conflito [nuclear, com a União Soviética] através da política de controlo de armas.”
“E depois havia o mistério inexplorado que era a China. [Nixon] proclamou desde o seu primeiro dia que queria abrir-se à China. Compreendeu que esta era uma oportunidade estratégica, pois dois adversários dos Estados Unidos estavam em conflito um com o outro” — uma referência à guerra fronteiriça que eclodiu entre a União Soviética e a China em 1969, depois das duas maiores potências comunistas se dividirem sobre questões ideológicas, oito anos antes. “Em seu nome dei instruções para tentarmos ficar mais próximos da China e da Rússia, mais do que estas estavam uma da outra.” Essas tendências, diz, estavam a convergir um ano antes do escândalo Watergate.
“No final da [presidência de Nixon] houve uma paz no Vietname que, nos seus termos, era honrosa e sustentada por um Presidente que tinha apoio interno. Tínhamos refeito a política do Médio Oriente”, expulsando eficazmente os soviéticos da região e estabelecendo os Estados Unidos como mediador da paz entre árabes e israelitas. “E tínhamo-nos aberto à China e [negociámos a limitação estratégica de armas] com a Rússia. Infelizmente, o apoio interno desintegrou-se. Em vez de explorarmos essas oportunidades, fomos forçados a ficar quietos, devido ao fracasso interno de Nixon.”
O Nixon que emerge da liderança de Kissinger é uma figura trágica — um estratego-mor cujo encobrimento sem escrúpulos do crime perpetrado pela sua equipa da campanha de reeleição destruiu não só a sua presidência mas também condenou o Vietname do Sul à destruição. E não foi só isso. Kissinger sugere que foi a derrota no Vietname que fez com que os EUA entrassem numa espiral descendente de polarização política.
“O conflito”, escreve, “introduziu um estilo de debate público progressivamente menos sobre a substância do que sobre os motivos políticos e identidades. A raiva substituiu o diálogo como forma de levar a cabo disputas e a discordância tornou-se um conflito de culturas”.
Pergunto se os EUA estão hoje mais divididos do que na altura do Vietname. “Sim, infinitamente mais”, responde.
Surpreendido, peço-lhe que elabore. No início da década de 70, diz, ainda havia uma possibilidade de bipartidarismo. “O interesse nacional era um termo relevante, não era em si mesmo um assunto de debate. Isso acabou. Atualmente, cada Administração enfrenta a hostilidade incessante da oposição e de uma forma que é construída em premissas diferentes... Agora, o debate não declarado, mas muito real, que vemos na América, é sobre se os valores americanos básicos continuam válidos”, ou seja, o estatuto sacrossanto da Constituição e o primado da liberdade individual e da igualdade perante a lei.
Republicano desde a década de 50, Kissinger evita declarar explicitamente que há elementos na direita americana que agora parecem questionar esses valores. Mas não está, claramente, mais entusiasmado por esses tipos populistas do que estava nos dias de Barry Goldwater, a esperança presidencial da década de 60, que era um arquidefensor do individualismo e um feroz anticomunista. Na esquerda progressiva, afirma, diz-se agora que “a menos que esses valores básicos sejam anulados, e que os princípios da [sua] execução sejam alterados, não temos direito moral nem mesmo para executar a nossa própria política interna, muito menos nossa política externa”. Esta “ainda não é uma visão comum, mas é suficientemente viral para que tudo convirja na sua direção e para evitar políticas unificadoras... É [uma visão mantida] por um grande grupo da comunidade intelectual, que provavelmente domina todas as universidades e muitos meios de comunicação”.
Pergunto: “Pode algum líder corrigir isto?”
“O que acontece quando se tem divisões intransponíveis é uma de duas coisas. Ou a sociedade desmorona e já não é capaz de desempenhar as suas missões sob qualquer liderança, ou transcende-as...”
“É preciso um choque externo ou um inimigo externo?”
“Essa é uma maneira de o conseguir. Ou através de uma crise interna incontrolável.”
Levo-o de volta ao mais antigo dos líderes descritos no seu livro, Konrad Adenauer, que em 1949 se tornou o primeiro chanceler da Alemanha Ocidental. Na última reunião que tiveram — é claro que Kissinger conheceu todos os seis pessoalmente —, Adenauer perguntou: “Será que alguns líderes ainda são capazes de conduzir uma verdadeira política de longo prazo? A verdadeira liderança ainda é possível hoje em dia?” Essa é seguramente a questão que o próprio Kissinger faz a si próprio, quase seis décadas depois.
A liderança tornou-se mais difícil, “devido à combinação de redes sociais, novos estilos de jornalismo, internet e televisão, todos com foco na atenção a curto prazo”.
Isto leva-nos à sua visão muito distinta de liderança. O que o seu sexteto de líderes tinha em comum eram cinco qualidades: eram contadores de verdades duras, tinham visão e eram ousados. Mas também eram capazes de passar tempo sozinhos, em solidão. E não temiam ser desagregadores.
“Deve haver na vida do líder algum momento de reflexão”, afirma Kissinger, indicando o tempo de exílio interno de Adenauer na Alemanha nazi; o tempo de De Gaulle como prisioneiro alemão na Primeira Guerra Mundial; a travessia do deserto de Nixon em meados da década de 60 depois de ter perdido as eleições tanto para a presidência como para governador da Califórnia; o tempo que Sadat esteve preso, quando o Egito ainda estava sob o controlo britânico. Algumas das passagens mais marcantes do livro são sobre esses períodos de isolamento. “O autodomínio devia tornar-se uma espécie de hábito”, escreveu De Gaulle enquanto esteve preso, “um reflexo moral adquirido por uma ginástica constante da vontade, especialmente nas coisas mais ínfimas: vestir, conversar, modo de pensar”.
Em 1932, o futuro Presidente francês chamou de “incessante autodisciplina” o preço da liderança — “a constante assunção de riscos e uma perpétua luta interior. O grau de sofrimento envolvido varia de acordo com o temperamento do indivíduo; mas não deverá ser menos doloroso do que o cilício do penitente”. De Gaulle tinha um lado profundamente bondoso, como podemos ver no seu amor pela filha Ana, que tinha síndrome de Down, mas tinha outro lado austero, indiferente, antagonista até mesmo para com os seus aliados.
Voltamo-nos para Margaret Thatcher, por quem Kissinger desenvolveu, claramente, afeto e respeito. Numa fase inicial da Guerra das Malvinas, depois do secretário dos Negócios Estrangeiros da Grã-Bretanha, Francis Pym, lhe dar um resumo do que se passava, Kissinger perguntou qual a solução diplomática que ela defendia. “Não farei nenhuma concessão!”, gritou Thatcher. “Como, meu velho amigo? Como pode dizer essas coisas?”
“Ela estava tão irritada”, lembra. “Não tive coragem para lhe explicar que a ideia não era minha, mas sim do seu chefe de diplomacia.”
Sugiro que o atual primeiro-ministro, Boris Johnson, seja quase o oposto de um líder, tal como Kissinger o define [Johnson deixou o cargo no dia 7 de julho]. Ultimamente não tem havido certamente muita da autodisciplina incessante de De Gaulle em Downing Street. Mais uma vez, a sua resposta surpreende-me: “Em termos da história britânica, ele teve uma carreira impressionante — alterou a direção da Grã-Bretanha na Europa, o que certamente será apresentado como uma das transições importantes na História.”
“Mas muitas vezes o que acontece é que as pessoas que completam uma grande tarefa não conseguem aplicar as suas qualidades à execução da mesma, ou seja, de que forma a podem institucionalizar”. Voltando, cuidadosamente, à discussão para os líderes de hoje em geral, acrescenta: “Não estaria a dizer a verdade se dissesse que o nível [de liderança] é apropriado ao desafio.”
Argumentei que, definitivamente, estamos a receber uma lição sobre liderança do Presidente da Ucrânia, a figura improvável do comediante transformado em herói de guerra.
“Não há dúvida que Zelensky realizou uma missão histórica”, afirma Kissinger. “O Presidente tem uma origem nunca antes vista na liderança ucraniana em qualquer período da sua História” — uma referência a Zelensky ser, como Kissinger, judeu. “Foi um Presidente acidental por causa da frustração sentida com a política interna. E depois viu-se confrontado com a tentativa da Rússia de restaurar a Ucrânia a uma posição totalmente dependente e subordinada. E conseguiu que o país e o mundo o apoiassem de uma maneira histórica. Essa é a sua grande conquista.”
No entanto, permanece a questão, “conseguirá mantê-lo na construção da paz, especialmente uma paz que implica algum sacrifício limitado?”
Peço-lhe a sua opinião sobre o adversário de Zelensky, o Presidente russo, Vladimir Putin, com quem se encontrou em inúmeras ocasiões, desde um encontro casual, no início da década de 90, quando Putin era vice-presidente da câmara de São Petersburgo.
“Achei que ele era um analista ponderado”, responde, “que via a Rússia como uma espécie de entidade mística que se mantinha unida em 11 fusos horários diferentes por uma espécie de esforço espiritual. E nessa visão a Ucrânia desempenhava um papel especial. Os suecos, os franceses e os alemães passaram por esse território [quando invadiram a Rússia] e foram, em parte, derrotados porque ficaram esgotados. Essa é a sua visão [de Putin]”.
No entanto, essa visão está em desacordo com os períodos da História da Ucrânia que a distinguiram do império russo. O problema de Putin, diz Kissinger, é que “ele é chefe de um país em declínio” e “perdeu o seu sentido de proporção nesta crise”. Não há “desculpa” para o que ele fez este ano.
Kissinger lembra-me o artigo que escreveu em 2014, no momento da anexação russa da Crimeia, no qual falou contra a ideia de a Ucrânia aderir à NATO, propondo, em vez disso, um estatuto neutro como o da Finlândia, e avisando que se continuassem a falar em termos de adesão à NATO corriam o risco de uma guerra. Agora, é claro, é a Finlândia que se propõe aderir à aliança atlântica, juntamente com a Suécia [Os dois países assinaram, entretanto, os protocolos de adesão à NATO]. Será que esta NATO em constante ampliação é agora demasiado grande?
“A NATO era a aliança certa para enfrentar uma Rússia agressiva, quando essa era a principal ameaça à paz mundial”, argumenta. “E tornou-se uma instituição que reflete a colaboração europeia e americana de uma forma quase única. Por isso, é importante mantê-la. Mas é importante reconhecer que as grandes questões vão acontecer nas relações entre o Médio Oriente e a Ásia e a Europa e a América. E, em relação a isso, a NATO é uma instituição cujos elementos não têm necessariamente pontos de vista compatíveis. Juntaram-se pela Ucrânia porque traz reminiscências das ameaças [mais antigas] e fizeram-no muito bem, e apoio o que fizeram.”
“A questão agora será como acabar essa guerra. Quando acabar tem de se encontrar um lugar para a Ucrânia e tem de se encontrar um lugar para a Rússia — se não quisermos que a Rússia se torne num posto avançado da China na Europa.”
Lembro-lhe de uma conversa que tivemos em Pequim no final de 2019, quando lhe perguntei se já estávamos na “Segunda Guerra Fria”, mas com a China agora a desempenhar o papel da União Soviética. Ele retorquiu, memoravelmente, “Estamos no sopé de uma Guerra Fria”. Um ano depois, atualizou a frase para “estamos no passo de montanha de uma Guerra Fria”. Onde estamos agora?
“Dois países com a capacidade de dominar o mundo" — os EUA e a China — “enfrentam-se como concorrentes derradeiros. São governados por sistemas internos incompatíveis. E isto ocorre numa altura em que a tecnologia significa que uma guerra irá atrasar a civilização ou mesmo destruí-la”.
Por outras palavras, a Segunda Guerra Fria é potencialmente ainda mais perigosa do que a Primeira Guerra Fria? A resposta de Kissinger é sim, porque ambas as superpotências têm agora recursos económicos comparáveis (o que não acontecia na Primeira Guerra Fria) e as tecnologias de destruição são ainda mais aterradoras, especialmente com o advento da inteligência artificial. O autor não tem dúvidas de que a China e a América são agora adversários. “Esperar que a China se torne ocidental” já não é uma estratégia plausível. “Não acredito que a soberania mundial seja um conceito chinês, mas pode acontecer que se tornem muito poderosos. E isso não é bom para nós.” No entanto, diz, as duas superpotências “têm uma obrigação comum mínima de evitar que [uma colisão catastrófica] aconteça”. Este era, de facto, o seu ponto principal em Davos, embora tenha passado, em grande parte, despercebido.
“Nós, no Ocidente, temos tarefas aparentemente incompatíveis. Precisamos de instituições de defesa capazes de lidar com os desafios modernos. Ao mesmo tempo precisamos de algum tipo de expressão positiva da nossa sociedade para que estes esforços sejam feitos em nome de algo, porque caso contrário não serão sustentáveis. Em segundo lugar, precisamos de um conceito de cooperação com a outra sociedade, porque não conseguimos agora desenvolver qualquer conceito de destruição. Portanto, é necessário um diálogo.”
“Mas esse diálogo parou”, observo.
“Além da troca de reclamações. É isso que me preocupa profundamente sobre o caminho que seguimos. E outros países irão querer explorar esta rivalidade, sem compreenderem os seus aspetos únicos.” Um piscar de olhos, depreendo, ao crescente número de países que procuram ajuda económica e militar de uma ou de outra superpotência. “Estamos a entrar num período muito difícil.”
Pergunto a Kissinger se se vê a si próprio como um líder. “Quando comecei, provavelmente não”, responde. “Mas agora sim. Não no sentido total... [Mas] tento ser um líder. Todos os livros que escrevi têm um elemento de ‘Como alcançamos o futuro?’”
Mostro-lhe que essa é uma modéstia excessiva. Tendo liderado o Conselho de Segurança Nacional, o Departamento de Estado e, por vezes, durante o Watergate, praticamente o governo dos EUA, é um líder totalmente qualificado, mesmo que nunca tenha sido eleito.
É hora de acabar. O nonagenário pode ainda estar com a força toda, mas eu estou exausto e tenho um avião para apanhar. Uma inspiração final leva-me a perguntar sobre o corolário indispensável da liderança. “E o seguidismo?”, pergunto. “Também diminuiu? As pessoas estão menos dispostas a seguir alguém?”
“Sim”, concorda. “O paradoxo é que a necessidade de liderança é maior que nunca.”
Há aqueles que, sem dúvida, continuarão a demonizar Henry Kissinger e a ignorar ou descurar o que diz. Contudo, aos 99 anos, pode bem dar-se ao luxo de ignorar os inimigos. No entanto, não perdeu o seu impulso de liderar. “A liderança”, escreve, “é necessária para ajudar as pessoas a ir de onde estão para onde nunca estiveram e, às vezes, onde nem se imaginam ir. Sem liderança, as instituições ficam à deriva e as nações procuram a irrelevância crescente e, em última análise, o desastre”.
Não há nenhuma obrigação em segui-la. Mas caminhar para o desastre sem qualquer liderança — ou, pior, com uma liderança falsa desprovida de autodisciplina — parece uma ideia pior.
Tradução Joana Henriques
Publicado originalmente em “The Sunday Times Magazine”
O SÉCULO TURBULENTO DE UM HOMEM
1923
Nasceu Heinz Alfred Kissinger em Fürth, na Alemanha, numa família de judeus ortodoxos. Quando era jovem, foi espancado por membros da Juventude Hitleriana.
1938
A família Kissinger foge da perseguição nazi e emigra, via Londres, para os EUA. Heinz muda o seu nome para Henry e naturaliza-se cidadão americano em 1943.
1943-46
Alista-se no exército dos EUA e participa da libertação do campo de concentração de Ahlem. Recebe a Estrela de Bronze em 1945 pelo seu papel no desmantelamento de uma célula adormecida da Gestapo.
1949
Casa com Anne Fleischer. Tem dois filhos. Divorcia-se em 1964.
1950
Bacharelato em Harvard, summa cum laude. Doutoramento em Harvard em 1954.
1954-69
Membro do corpo docente de Harvard. Consultor de várias agências americanas durante as administrações dos Presidentes Eisenhower, Kennedy e Johnson.
1969-73
Conselheiro de segurança nacional do Presidente Richard Nixon. Os críticos mais tarde acusaram Kissinger de “crimes de guerra” em relação ao bombardeamento americano do Camboja numa extensão da Guerra do Vietname, e de apoiar uma brutal repressão militar no Bangladexe, que matou centenas de milhares de pessoas.
1973
Vence o Prémio Nobel da paz juntamente com o político vietnamita Le Duc Tho pelos seus esforços para acabar com a Guerra do Vietname. Le Duc Tho recusa o prémio e Kissinger não participa na cerimónia.
1974
Casa-se com Nancy Maginnes, assessora do governador de Nova Iorque, Nelson Rockefeller.
1973-77
Secretário de Estado dos EUA, no governo de Nixon, até ao Watergate, em 1974, depois no governo de Gerald Ford. Os críticos de Kissinger destacaram mais tarde como apoiou ditaduras militares implacáveis na Argentina, no Chile e noutros lugares.
1984-90
Membro do Conselho Consultivo de Inteligência Externa de Ronald Reagan.
2001-20
Membro do Conselho de Política de Defesa, um comité consultivo do Departamento de Defesa dos EUA.
In: https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2594/html/revista-e/-e/henry-kissinger.-historia-viva