O estadista da Guerra Fria, com 99 anos, fala sobre Putin, a China e o novo momento de perigo que atravessamos. "Estamos a entrar num período muito difícil", alerta
TEXTO NIALL FERGUSON
HISTORIADOR, INVESTIGADOR PRINCIPAL DA HOOVER INSTITUTION, AUTOR DE “KISSINGER, 1923-1968: O IDEALISTA”. O SEGUNDO VOLUME SERÁ CONCLUÍDO EM 2023
Henry Kissinger fez 99 anos a 27 de maio. Nascido na Alemanha no auge da hiperinflação de Weimar, ainda não tinha dez anos quando Hitler chegou ao poder e com apenas 15 anos desembarcou como refugiado com a sua família na cidade de Nova Iorque. De alguma forma, é quase surpreendente que este antigo secretário de Estado americano e gigante da geopolítica tenha cessado funções há 45 anos.
A caminho de um século de vida, Kissinger não perdeu nenhum do poder de fogo intelectual que o distinguiu de outros professores e praticantes de política externa da sua geração e das gerações seguintes. No tempo que eu demorei a escrever o segundo volume da sua biografia, Kissinger publicou não um, mas dois livros — o primeiro, em coautoria com o antigo CEO da Google, Eric Schmidt, e o informático Daniel Huttenlocher, é sobre inteligência artificial, e o segundo é uma coleção de seis estudos de casos biográficos sobre liderança.
Encontrámo-nos no seu retiro rural, nos bosques do Connecticut, onde ele e a mulher, Nancy, passam a maior parte do seu tempo desde o início da covid. A pandemia trouxe-lhes um lado bom. Foi a primeira vez em 48 anos de casamento que o compulsivamente itinerante Dr. Kissinger foi forçado a parar. Afastado das tentações dos restaurantes de Manhattan e dos banquetes de Pequim, perdeu alguns quilos. Embora ande com uma bengala, dependa de um aparelho auditivo e fale lentamente naquele inconfundível timbre barítono, a sua mente está tão aguçada como sempre.
Kissinger também não perdeu o seu talento para enfurecer os professores liberais e progressistas nem ‘acordar’ os estudantes que dominam Harvard, a universidade onde construiu a sua reputação de académico e intelectual público nos anos 50 e 60.
Todos os secretários de Estado e conselheiros de segurança nacional (o primeiro posto que ocupou no governo) tiveram que escolher entre uma má opção e outra pior. No ano passado, Antony Blinken e Jake Sullivan, que detêm atualmente essas posições, abandonaram o povo do Afeganistão à sua sorte com os talibãs e este ano estão a despejar dezenas de milhares de milhões de dólares em armamento na zona de guerra que é a Ucrânia. De alguma forma, essas ações não provocam o mesmo ataque que Kissinger sofreu ao longo dos anos pelo seu papel em eventos como a Guerra do Vietname (uma quantidade significativa de críticas também veio da direita, embora por razões muito diferentes)
Nada pode ilustrar melhor a sua capacidade de enfurecer tanto a esquerda como a direita do que a controvérsia desencadeada pelo seu breve discurso no Fórum Económico Mundial, em Davos, no dia 23 de maio. “Henry Kissinger — A Ucrânia deve dar território à Rússia” era a manchete do “Telegraph”, despertando um número quase igual de tweets enfurecidos de progressistas que adicionaram as cores azul e amarelo da Ucrânia à versão mais recente da bandeira do orgulho e de neoconservadores que clamam por uma vitória ucraniana e mudança de regime em Moscovo. Numa resposta assustadora, o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, acusou Kissinger de favorecer o apaziguamento da Rússia fascista, ao estilo de 1938.
A coisa mais estranha de toda essa comoção foi que o estadista não disse nada daquilo. Argumentando que alguma espécie de paz deve eventualmente ser negociada, declarou simplesmente que “a linha divisória [entre a Ucrânia e a Rússia] deveria voltar ao statu quo anterior” — ou seja, à situação antes de 24 de fevereiro, quando partes de Donetsk e Luhansk estavam sob o controlo de separatistas pró-Moscovo e a Crimeia fazia parte da Rússia, como acontece desde 2014. Foi isso que o próprio Zelensky disse em mais de uma ocasião, embora alguns porta-vozes ucranianos tenham defendido recentemente o regresso às fronteiras anteriores a 2014.
Tais equívocos não são novidade para Kissinger. Quando estava a tentar persuadir Barack Obama a sair do Afeganistão, o vice-presidente, Joe Biden, traçou uma analogia infeliz com o desacreditado antigo Presidente dos EUA, Richard Nixon. “Temos que estar de saída”, disse ao veterano diplomata Richard Holbrooke, “temos de fazer o que fizemos no Vietname.” Holbrooke, representante especial de Obama para o Afeganistão e Paquistão, respondeu: “Pensava que tínhamos uma certa obrigação para com as pessoas que confiaram em nós.” A resposta de Biden foi reveladora: “Que se f...”, disse, supostamente, a Holbrooke. “Não temos de nos preocupar com isso. Fizemos o mesmo no Vietname. E Nixon e Kissinger não tiveram problemas.”
No entanto, a realidade foi, mais uma vez, bastante diferente. Em 1969, Nixon e Kissinger rejeitaram completamente a ideia de abandonar o Vietname do Sul à sua sorte, à medida que os manifestantes antiguerra os forçavam a isso. Em vez de sair e fugir, procuraram alcançar uma “paz com honra”. A sua estratégia de “vietnamização” foi, na verdade, uma versão do que os Estados Unidos estão a fazer na Ucrânia hoje: fornecer as armas para que o país possa lutar para defender a sua independência, em vez de dependerem das tropas americanas no terreno.
Pergunto se os EUA estão hoje mais divididos do que na altura do Vietname. “Sim, infinitamente mais”, diz.
Os tipos de Harvard e Yale espumam ainda mais quando veem Nixon como um dos seis exemplos na liderança de Kissinger, ao mesmo nível de Konrad Adenauer, Charles de Gaulle, o ex-Presidente egípcio Anwar Sadat, o primeiro primeiro-ministro de Singapura, Lee Kuan Yew, e Margaret Thatcher (cuja inclusão fará os tipos de Oxford e Cambridge espumar da mesma maneira).
Pergunto-lhe porque é que Nixon — o único Presidente forçado a demitir-se — merece um capítulo à parte num livro sobre a liderança. Não é um estudo de caso em como não liderar? Kissinger começa com o veredicto sucinto sobre Watergate fornecido por Bryce Harlow, o experiente operacional de Washington, que era o homem de ligação de Nixon com o Congresso: “Algum tolo maldito entrou na Sala Oval e fez o que lhe disseram para fazer” — ou seja, alguém na Casa Branca levou Nixon demasiado à letra.
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