Hassane Armando é um daqueles jovens que foi vítima da história do seu próprio país. Viveu uma infância marcada pelos piores traumas que uma criança da sua idade podia passar: grandes incertezas, insegurança generalizada e riscos até da sua própria vida. Mas, nem com isso perdeu a coragem e soube dar sentido a sua vida. Ele soube inverter com sucesso a sua posição de vítima para sujeito da historicidade do seu país. Tempos de Fúria: Memórias do Massacre de Ho-moíne} 18 de Julho de 1987, Moçambique é pequeno, mas bastante comovente testemunho de um jovem moçambicano que viveu e sentiu a fúria e a violência da guerra civil moçambicana opondo a Resistência Nacional Moçambicana, hoje (Renamo), e o Governo liderado pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), que nos relata, de uma maneira bastante simples e com muita naturalidade, episódios bastante marcantes da história da sua vida, num tom semelhante ao seu próprio carácter.
Confesso desde já que não sou a pessoa ideal para prefaciar esta obra, a sua natureza limita-me bastante. Os meus conhecimentos sobre a literatura são bastante incipientes, mas por dois motivos senti-me beliscado e foi-me difícil resistir de reagir. É por isso que, possivelmente, reine em mim a emoção mais do que a perfeição. Um dos motivos que me dificultaram resistir tem a ver com a longa convivência com o autor como colega de profissão e grande amigo, o que me colocou numa posição privilegiada de ouvir contados directamente por ele alguns dos episódios apresentados nesta obra. Na verdade, são histórias bastante chocantes que ele presenciou e em muitos casos foi vítima, narradas num tom bastante descontraído como se de lendas tratassem e se nada tivessem a ver com ele, uma rara firmeza e carácter que admiro bastante. O segundo motivo emergiu ao percorrer a obra, o que me pareceu um desafio que o autor me coloca na qualidade de quemlida com história sob o olhar passivo de factos passíveis de tratamento científico em redor.
A guerra civil moçambicana é um dos episódios bastante recentes da história do País, por isso é uma das pequenas parcelas da história nacional bastante rica em fontes, mas nem com isso a sua investigação tem sido desenvolvida até as últimas consequências e as razões dessa passividade dos cientistas sociais face a este conflito nem eu sou capaz de explicar.
Os meus tempos de convivência com Hassane permitem-me perceber com muita facilidade neste livro a história apresentada e sempre esperei a sua publicação como ele sempre me prometeu.
A partir de uma parcela de memórias particulares, o autor reflecte o auge de uma trágica realidade vivida por um país inteiro através de uma narrativa minuciosa retratando o massacre de Homoíne, remeten-do-nos a uma reflexão sobre as fragilidades no esquema da segurança governamental, a perícia com que as tropas da Renamo operavam, a barbaridade da acção cometida no momento do massacre e leva-nos a uma outra dimensão da reflexão, que muitos preferem preservar em segredo, que é a vida e convivência nos quartéis da Renamo. Acredito que esta obra será uma valiosa contribuição para uma reavaliação imparcial da guerra civil moçambicana que para muitos, incluindo eu, continua a ser um mistério sem explicação.
Tempos de Fúria: Memórias do massacre de Homoíne, 18 de Julho de 1987, Moçambique é simplesmente uma obra de uma vítima inocente da história do seu país.
Maxixe, 12 de Maio de 2012
Henrique Francisco Litsure
Universidade Pedagógica Sagrada Família da Maxixe (Moçambique)
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POSFÁCIO
Para uma História Social da Guerra Civil Moçambicana
Recentemente, fiz uma comunicação ao colóquio dos Dez Anos do Instituto de Ciências Sociais e Económicas, no Maputo (19-21 de Setembro de 2017), cujo título foi "A Renamo, um assunto para cientistas sociais". Foi uma chamada de atenção sobre a falta de estudos, em Moçambique, sobre a Renamo e, num sentido mais lato, o mundo social da Renamo.
O título deste posfácio podia ser exatamente o mesmo. Com efeito, por causa da sua origem com apoio da Rodésia do Sul e da África do Sul - apoio que foi pagando caro durante muito tempo -, a Renamo sempre apareceu como o partido "não legítimo", como se o conceito despolitizante de "bandidos armados" ainda esteja em vigor.
Qual é a proporção, hoje, de cientistas sociais moçambicanos, de estudantes de mestrado ou de doutoramento, cuja pesquisa incida sobre a Renamo ou sobre o mundo social dela? E reduzidíssima. Além de uma tentativa de João Paulo Borges Coelho e Sérgio Nathú Caba alguns anos atrás com estudantes seus1, além da tese de doutoramento de Domingos do Rosário2 e de um seu artigo sobre Angoche3, além da tese e de um artigo do Sérgio Chichava sobre a Zambézia4, quem?
João Paulo Borges Coelho & Sérgio Nathú Caba (eds), Elementos para a História Social da Guerra em Moçambique, 1978-1992, Maputo, Universidade Eduardo Mondlane, 2003 [não publicado]
Domingos do Rosário, "Les mairies des autres. Une analyse politique, socio--historique et culturelle des trajectoires locales. Le cas d'Angoche, de 1'íle de Moçambique et de Nacala Porto", tese de ciências políticas politiques, Sciences Po Bordeaux/Université de Bordeaux 4, Abril de 2009.
Vivendo em França, posso não estar a par de alguns estudos mas, de qualquer maneira, serão uma pequena minoria em comparação com a totalidade dos trabalhos de Ciências Sociais sobre o mundo do Estado moderno - isto é, o mundo social da Frelimo -, sobre as Organizações não governamentais necessariamente autorizadas pela Frelimo (não há nenhuma ONG no mundo social da Renamo ainda hoje!), até sobre o MDM de Deviz Mbepo Simango. A Renamo fica em grande medida um tabu para as Ciências Sociais, o que prolonga os desequilíbrios tradicionais na produção da história de Moçambique, feita a partir do mundo social da Frelimo.
E por isso que o livro do meu amigo Hassane Armando é tão importante: não é um livro de pesquisa, não é um livro de um académico, não é um livro de história (como disciplina), é um livro de memória, mas é um livro que é uma fonte para a história. Acontece que Hassane teve grandes dificuldades em encontrar uma editora, apesar da ajuda permanente de Luiz Henrique Passador, antropólogo brasileiro que o conheceu quando pesquisava durante anos sobre a pandemia da SIDA na região de Homoíne e, apesar de um jeitinho meu na recta final, nos tempos conturbados que Moçambique atravessa, publicar um livro sobre a guerra civil não pareceu "conveniente" para muitas editoras. Afinal, o livro foi publicado pela editora lisboeta Colibri. Saúdo a iniciativa da Colibri, mas é pena o livro não ter sido publicado em Moçambique! Mesmo se, por azar, amanhã, haja uma nova guerra civil em Moçambique, não seria uma razão, ao contrário, para não pesquisar sobre a de 1977-1992.
Com efeito, a "macro-história" da guerra civil é bastante conhecida: como aconteceu, como foi o apoio da Rodésia do Sul e da Africa do Sul, como foram as negociações de Roma. Mas a "micro-história", nas localidades, no mato, é muito pouco conhecida e pesquisada.
Domingos Manuel do Rosário, "Os Municípios dos "Outros". Alternância do poder local em Moçambique? O caso de Angoche", Cadernos de Estudos Africanos, 30, 2015: 135-165, <http://cea.revues.org/1856>.
Sérgio Inácio Chichava, "Le "Vieux Mozambique": 1'identité politique de la Zambézie", tese de ciências políticas politiques, Sciences Po Borde-aux/Université de Bordeaux 4, Junho de 2007, "Uma Província "Rebelde". O Significado do Voto Zambeziano a Favor da Renamo", Maputo, IESE, 2008.
Uma outra razão para não querer publicar o livro do Hassane, além de ser sobre a guerra civil, incidia mais precisamente sobre o massacre de Homoíne, que ficou como o "tabu dos tabus": só podia ser a Renamo que chacinou tudo e todos, ponto final. Mas Hassane, que viveu a tragédia, demonstra que não foi tão simples. Sejamos claros: Hassane em nada absolve a Renamo, ao contrário, ele descreve em detalhes o ataque dos Matsangas, as pessoas assassinadas, incluindo pessoas da sua próxima família, os raptos, incluindo o seu. Mas ele descreve também a responsabilidade da contra-ofensiva de uma unidade do exército e dos antigos combatentes da Frelimo da aldeia de Chinginguire a uma distância de 7 km para o sudoeste da vila, que atiraram contra qualquer pessoa que estava a correr e a fugir e cujo número de vítimas foi, talvez - sou eu que digo -, igual às da Renamo. Isto com certeza será a parte mais polémica da obra do Hassane. No entanto, talvez não seja a mais importante do livro.
O que me parece o contributo mais importante à história, é a parte sobre a vida nas "zonas libertadas" da Renamo, as relações sociais entre os camponeses, os militares, os mudjibas, os cativeiros; sobre como é que se continuava a produzir nessas zonas, apesar dos ataques da Frelimo; como é que a Renamo teve uma "política especial" (e de clemência relativa) para com os muçulmanos no Sul, não obrigados a tornarem-se soldados; quão era importante a diferença de comportamento entre um e outro comandante da Renamo; como é que se raptava não só rapazes para serem soldados ou raparigas supostamente para serem escravas sexuais, mas porções inteiras da população, incluindo pessoas idosas, porque era uma batalha para o controlo do povo; como a Frelimo tentava também raptar populações vivendo do lado da Renamo, pela mesma razão, etc. Penso que essas páginas do livro do Hassane serão as mais novas, para demonstrar - qualquer que for a opinião de cada um sobre a Renamo - que se tratava de uma parte da sociedade moçambicana, de um mundo social, e não de um mero grupo de "terroristas vindos de fora" ou de "bandidos armados".
Mas esse mundo da Renamo não era o do Hassane, ele fazia parte do mundo da cidade, do mundo do Estado moderno e, apesar do enorme perigo, quis e conseguiu fugir para voltar a Homoíne, onde ele vive ainda.
Quantos Hassanes existem nas camadas humildes dos povos de Moçambique, que poderiam escrever as suas memórias da guerra civil, em qualquer parte do país? Devem ser muitos, mas é raro encontrar as condições para escrever, dias após dias, um livro e ainda mais difícil, depois, publicá-lo. Aparece o livro do Hassane Armando. Espero que ele não seja mais do que o primeiro. Hassane, obrigadíssimo!
20 de Junho de 2015, 3 de Outubro de 2017
Michel Cahen
Université de Bordeaux, CNRS/Sciences Po Bordeaux, Les Afriques dans le Monde (LAM) Casa de Velázquez, École des Hautes Études Hispaniques et Ibériques, Madrid
NOTA: Destaco do Prof. Michel Cahen; “Mas Hassane, que viveu a tragédia, demonstra que não foi tão simples. Sejamos claros: Hassane em nada absolve a Renamo, ao contrário, ele descreve em detalhes o ataque dos Matsangas, as pessoas assassinadas, incluindo pessoas da sua próxima família, os raptos, incluindo o seu. Mas ele descreve também a responsabilidade da contra-ofensiva de uma unidade do exército e dos antigos combatentes da Frelimo da aldeia de Chinginguire a uma distância de 7 km para o sudoeste da vila, que atiraram contra qualquer pessoa que estava a correr e a fugir e cujo número de vítimas foi, talvez - sou eu que digo -, igual às da Renamo. Isto com certeza será a parte mais polémica da obra do Hassane.”
Concluindo: se um matou indiscriminadarnente o outro não lhe ficou atrás. Por isso a não realização de um qualquer inquérito, interno ou internacional até hoje.
Fernando Gil
MACUA DE MOÇAMBIQUE