A terminar vejamos um pouco do que foi o envolvimento de Moçambique e Lourenço Marques na última guerra do século XIX e a primeira do século XX. A guerra que veio consolidar o Império Britânico e a estabelecer a Inglaterra como a super potencia indisputada da época, a Segunda Guerra Bóer ( 1899-1902).
A primeira (1880-1881) durou apenas três meses e terminou num compromisso, mais uma trégua que um acordo de paz em que ninguém perdeu face e por isso aceitável para ambas as partes.
Como sempre, existem varias versões que tentam justificar o desencadear da segunda. Não nos vamos debruçar sobre elas. Limitar-me-ei a enumerar as que me parecem mais obvias.
Em primeiro lugar as desmesuradas ambições de Alfred Milner, Alto Comissário britânico em Cape Town, e Cecil Rhodes aventureiro e empresário. A República do Transval era um obstáculo ao sonho de um território ininterruptamente britânico do Cabo ao Cairo. Em segundo lugar a descoberta de ouro, depois dos diamantes, na área de Joanesburgo, e que atraiu legiões de prospectores vindos de fora, os “uitlanders”, que vieram por completo alterar e destruir a tradicional e pacífica economia rural praticada pelos “boers”, como aliás o previu o Presidente Kruger.
Não interessa saber quem disparou o primeiro tiro, estavam criadas as condições para o início do conflito em 9 de Outubro de 1899.Contrariamente às suas expectativas os primeiros meses foram desastrosos para os ingleses. Estes sobretudo depois da Guerra da Crimeia (1853-1854) descobriram que o seu vasto império não só servia para alimentar as industrias nascidas da Revolução Industrial como também podia fornecer homens para as suas forças armadas. È assim que o general Kitchner chega a ter sob as suas ordens meio milhão de soldados originários da Austrália. Nova Zelândia, Canadá, Índia e até do Ceilão.
A desproporção de forças ( os “boers” nunca puderam disponibilizar mais de 40000 homens no terreno) iria ditar o inevitável desfecho. Pretoria cai a 5 de Julho de 1900 e o Presidente Kruger parte para o exílio na Europa a 19 de Outubro. Inicia-se então a segunda fase da guerra, que irá durar mais dois anos, a guerra de guerrilhas, à qual o general Kitchner se opõe com a política da terra queimada, durante a qual dezenas de quintas são destruídas e as mulheres e crianças enviadas para campos de concentração sem as mínimas condições de higiene ou habitabilidade e com falta de comida.
O fim chega finalmente a 31 de Maio de 1902. Este trágico conflito saldou-se com a morte de cerca de 22000 homens da parte das forças imperiais (das quais só um terço em combate e os outros por doença) e de 34000 “boers” (6000 em combate e o resto nos campos de concentração).Muito se falou de uma “guerra entre brancos”, mas a realidade é que morreram também perto de 15000 negros, alguns deles em combate de ambos os lados, mas a grande maioria vítimas indirectas da “politica da terra queimada”.
A rainha Vitória, que morre em Janeiro de 1901, não chega a testemunhar o desprestígio que a actuação inglesa causou, não só nos meios internacionais como dentro da própria Inglaterra, onde muitos intelectuais fizeram ouvir as suas vozes.
Resta-nos agora ver qual foi o envolvimento de Moçambique, sobretudo de Lourenço Marques, neste conflito
Depois da Conferência de Berlim (1885) os principais beneficiários começam a introduzir em Africa o sub produto da Revolução Industrial, chamado o caminho-de-ferro, e os 15 anos que se seguiram viram surgir novas linhas de penetração que comodamente permitiram a chegada de brancos a regiões até aí praticamente inacessíveis e simultaneamente o escoamento dos produtos por eles produzidos ou extraídos da terra.
Foram empreendimentos rentáveis sobretudo para as nações, como a Inglaterra, que dispunham da tecnologia e do capital necessários, embora não isentos de muitos perigos e tribulações.. Como vimos atrás para a linha de Lourenço Marques para o Transval quem não dispusesse daqueles dois atributos ficava ainda sujeito às especulações e atentados à soberania por parte de companhias com accionistas maioritariamente estrangeiros.
Apesar de todas as tribulações esta linha foi finalmente formalmente inaugurada com a presença do Presidente Kruger do Transval em meados de 1895. Ao terminar o século XIX, graças ao aumento da segurança em geral e do aumento espectacular do transito de mercadorias de e para o “hinterland”, Moçambique viu começar a rentabilizar-se o sacrifício e o investimento em homens e capital, feitos em anos anteriores. Embora existisse desde 1891 em Lourenço Marques um arremedo de cais com alguns guindastes a vapor instalados pela companhia exploradora da linha para a construção e montagem de material ferroviário o embarque e desembarque das mercadorias fazia-se por intermédio de barcaças e batelões de que eram proprietários súbditos ingleses que controlavam também os serviços de “ship chandlers”
O rebentamento da segunda guerra Anglo Bóer (1899-1902) teve consequências funestas para este temporário “boom” económico. No princípio as firmas britânicas puseram os seus interesses à frente do patriotismo, e, embora por razões diferentes foram seguidas por todas as outras. Podemos assim dizer que a mentalidade geral em Lourenço Marques era favorável à Republica do Transval. Não esquecer que o Ultimato de 1890 tinha acontecido há menos de dez anos.
Mas rapidamente a Inglaterra agiu para pôr fim a este estado de coisas .Em 14 de Outubro de 1899 ( a guerra havia oficialmente começado a 9!)é assinado em Londres pelo Marquês de Salisbury ,1º Ministro britânico, e pelo Marquês de Soveral, Embaixador português, um Acordo secreto, que invocava o artigo 1º do Tratado de 29 de Janeiro de 1642 e o ultimo artigo do Tratado de 23 de Junho de 1661. Seria interessante analisar em pormenor este acordo, o que está para alem dos objectivos destas despretensiosas palavras.
Basta dizer que tendo em consideração que estes acordos do século XVII e que as suas disposições se estendiam aos descendentes e herdeiros dos soberanos reinantes na altura em contrapartida da Inglaterra por via destes acordos “ se comprometer a defender e proteger todas as conquistas ou colónias pertencentes à Coroa de Portugal contra todos os seus inimigos tanto futuros como presentes, a Coroa de Sua Majestade Fidelíssima obriga-se a não permitir depois da declaração de guerra entre a Gran Bretanha e a Republica Sul Africana, e durante ella, a importação de armas e material de guerra destinados a esta ultima. O Governo de Sua Majestade Fidelíssima não proclamará a neutralidade durante a guerra entre a Gran Bretanha e a Republica Sul Africana” Como são curtas as memórias dos diplomatas...!
Simultaneamente a “Royal Navy” lançou-se num bloqueio naval, considerado ilegal com base no Direito Internacional Marítimo, que dada a sua ineficácia, trouxe aos ingleses vários problemas internacionais e poucos resultados práticos.
Lourenço Marques passa a ser um centro muito activo de espionagem e “intelligence” para ambos os contendores, com o Consulado britânico actuando não só no domínio das informações mas também como base para as operações levadas a cabo a partir do território moçambicano pelos ingleses. Existem dúvidas se o acordo secreto seria do conhecimento das entidades inglesas, mas mesmo sem ele as pressões sobre os funcionários portugueses foi tremenda levando mesmo à demissão de um director das Alfândegas. Incapazes de parar aquilo que foi rotulado de contrabando, sabe-se que até Agosto de 1901 foram gastas pelos ingleses pelo menos 100000 libras na compra de carga não militar.
No campo das operações militares dirigidas de Lourenço Marques podemos citar as várias e quase sempre descoordenadas e infrutíferas tentativas de destruir a ponte do caminho de ferro em Komatipoort.
A guerra prolongou-se ainda por mais um ano, com o embargo a ser furado com material a entrar por Inhambane, Beira e até Quelimane, mas o fim aproximava-se rapidamente. Pretoria cai em Junho de 1900 e termina praticamente toda a ajuda externa.
Em Setembro do mesmo ano o Presidente Kruger passa de comboio em Komatipoort, que os ingleses conquistam em 24 de Setembro,( invocando que já tinha havido muitas destruições diz-se que recusou a sugestão de rebentar a ponte que tantas preocupações causara aos ingleses) a caminho de Lourenço Marques e do exílio na Europa. Do resto da guerra já falámos. De mencionar como curiosidade que é em Lourenço Marques que termina a fuga de Winston Churchill da prisão da State Model School em Pretoria a 15 de Novembro de 1899.
Nada encontrei que confirmasse os rumores da utilização dos ingleses do caminho-de-ferro para o Transval para transporte de tropas. Em contrapartida a linha da Beira que entrara em funcionamento em Fevereiro de 1898 foi usada, entre Março e Julho de 1900, pelo general Carrington para o transporte das suas forças estimadas em 5000 homens, 100000 cavalos e 14000 toneladas de armas, munições e aprovisionamentos. Esta força viria a efectuar o envolvimento do Transval pelo norte.
Muito terá ficado por dizer, embora eu tenha acabado por dizer mais do que inicialmente me propusera. Ficam no entanto pistas para que outros, com mais talento, possam explorar no sentido de tornar conhecida uma parte desta pouco divulgada época da nossa história comum com Moçambique.
E a terminar quero partilhar com Vexas. um pensamento de D. Fr. Manuel do Cenáculo: ”Que proveitosa e agradável cousa é a memória dos maiores, ser deles imagem e continuar com eles as obrigações à posteridade”.
(Texto de uma amiga e colega do então Liceu Salazar de Lourenço Marques)