Por Clara Ferreira Alves
QUASE TUDO O QUE NOS RODEIA E EM QUE ASSENTA O NOSSO BEM-ESTAR TEVE UMA HISTÓRIA DUVIDOSA NA MANUFATURA OU NA BUSCA DA MATÉRIA-PRIMA
Se a vida fosse tão simples. Bastava colocar uma braçadeira com a causa e os símbolos do momento e aliviar a consciência, ou melhor, aliviar o peso da indiferença. Nada como projetar a imagem de benfeitor da Humanidade.
A vida não é simples. Talvez se estes protestos veementes contra o campeonato do mundo no Catar tivessem sido feitos quando a corrupta FIFA tomou a decisão, talvez e muito talvez, tantos escravos asiáticos não tivessem, como se comenta na hipérbole sentimental, regado os relvados dos estádios com o sangue. E se este fosse o único sangue derramado. Protestar quando os estádios já foram construídos pouco resolve a não ser o problema da consciência coletiva, que sofre de amnésia localizada.
É verdade que muitos migrantes escravizados morreram na construção dos estádios, mas continuariam a morrer e continuarão a morrer na construção de arranha-céus, centros comerciais, hotéis, estradas e todos os projetos arquitetónicos megalómanos pagos com o dinheiro do petróleo, do gás e do turismo do Golfo Pérsico. Todas as cidades dos Emirados e do Catar, e as futuras cidades utópicas da Arábia Saudita dos sonhos de Mohamed bin Salman foram e serão construídas assim, e “regadas com o sangue” da Ásia miserável. O que nunca impediu um único turista de passar férias no Dubai ou procurar oportunidades de vida e trabalho em Abu Dhabi, no Bahrein ou no Kuwait. E admirar o Burj Khalifa, onde também labutaram e morreram migrantes. Tal como os direitos humanos nunca impedirão a viagem para um baratíssimo paraíso turístico.
O mesmo dinheiro que paga a arquitetura futurista em ar condicionado paga as guerras travadas com as armas, milhares de milhões de dólares de armas, vendidas pelos Estados Unidos e vários países ocidentais e profundamente democráticos, bem como as armas vendidas por países profundamente não democráticos, a todas as nações dispostas a comprá-las com o pretexto de uma batalha pela supremacia ou o esmagamento de líderes com ambições democráticas. Os Estados, e as democracias, são os maiores traficantes de armas do planeta. Veja-se o caso de Mianmar, que tão pouco mobiliza as consciências, apesar do massacre. Da escravidão nas minas e nas fábricas de anfetaminas consumidas pelas classes possidentes dos países ricos. A Birmânia não tem apenas rubis, é o maior fabricante de fentanil. A mesma droga que chegou ao Minnesota e matou um génio da música chamado Prince.
Se queremos protestar contra o tratamento desumano de seres humanos, devemos talvez começar por despir a camiseta fast-fashion feita no Bangladexe, descalçar as sapatilhas feitas na Indonésia, prescindir do equipamento de surfista feito no Nepal e atirar para o lixo o telemóvel. E cancelar as férias em Cuba, no Egito e no Irão, como exemplo.
Sobretudo descartar o telemóvel, provavelmente fabricado na China na famosa Foxconn, cujos trabalhadores vivem em regime de trabalhos forçados e de encarceramento pela política de covid zero da China, privados de direitos e sujeitos a um horário de prisioneiros. Não espanta que tenham fugido em massa e abandonado o trabalho na fábrica, que agora recruta à força camponeses. Claro que a Apple tentou há uns anos obrigar as autoridades chinesas a um tratamento melhorado, mas depois do barulho inicial, tudo volta a ser como dantes. E quanto às roupas e sapatos de marcas internacionais feitos pelos uigures dos campos de internamento de Xinjiang? Já que falamos de telemóveis, convinha oferecer um minuto de silêncio pelas crianças escravas do Congo que começam a esgaravatar a terra assim que são desmamadas em busca das terras raras tão preciosas para a indústria tecnológica. A situação das crianças do Congo é tão malevolente quanto esquecida, porque o Congo é um daqueles países que não mobilizam a consciência ocidental. A cancel culture nunca sai do próprio bairro. O Congo do coração das trevas de Joseph Conrad continua intacto.
O mesmo para as crianças e adultos envenenados pelos cemitérios tecnológicos em África, onde despejamos os computadores e gadgets de que fizemos o upgrade, e os cemitérios da fast-fashion, as camisetas de cinco euros que usamos uma vez e deitamos fora. A fast-fashion não envenena apenas os cemitérios do consumismo, envenena o meio ambiente em redor das fábricas onde a mão de obra é tão explorada que autoriza os cinco euros. Envenena os rios e os lençóis freáticos, envenena os mares, envenena as terras, envenena as populações e as aldeias. Basta passar na Índia rural e olhar a cor dos rios dos despejos das fábricas de têxteis. Rios verdes e amarelos, tóxicos, onde se banham crianças que viverão poucos anos. No país mais populoso da terra, que ultrapassou a China, saudamos a democracia para resgatar o país do deplorável sistema de castas e de tradições que atira milhões para uma vida na lixeira e no cano esgoto. Inquietamo-nos com a oligarquia autoritária chinesa e deixamos passar sem censura a imperdoável iniquidade social da Índia, vista como o “país do futuro”.
O bem-estar do Ocidente repousa sobre a miséria dos países ditos emergentes, que pagarão a fatura humana das alterações climáticas. E o ar condicionado não apenas dos megálitos do Golfo Pérsico, o nosso ar condicionado dos edifícios supostamente “inteligentes” que a arquitetura contemporânea decidiu serem o equivalente das pirâmides do Egito ou do México, também regadas com o sangue escravo e assentes sobre a poeira das ossadas dos construtores.
Dizia Agustina Bessa-Luís que as pessoas precisam de génios infelizes para se verem poupadas no seu anonimato. Os génios estão mortos, morreram com o declínio das artes, e os felizes sucessores jazem em Silicon Valley, enriquecendo à custa do consumismo como sistema psicológico de compensação. Elon Musk quer que os trabalhadores trabalhem sem descanso, e Jeff Bezos inventou um sistema de monitorização dos operários dos armazéns logísticos da Amazon que os autoriza a ir à casa de banho em intervalos severos. Alguns desmaiam com o calor no verão, outros têm as mãos rasgadas pelo frio no inverno, porque os armazéns não têm temperaturas aceitáveis, caixotes demasiado grandes para climatizar. Os Governos concedem incentivos fiscais, isenções, a estas multinacionais porque criam postos de trabalho. Uma mão de obra próxima da escravatura autoriza Bezos e Musk a encolherem os ombros quando rebenta um foguetão de mil milhões de dólares.
Se quisermos lavar a consciência com a lixívia das boas intenções e dos gestos simbólicos, devemos começar por limpar a casa. Quase tudo o que nos rodeia e em que assenta o nosso bem-estar teve uma história duvidosa na manufatura ou na busca da matéria-prima. Desde o holocausto animal para podermos comer carne barata (e os mirtilos higiénicos de Odemira) até ao cacau colhido pelas mãos negras de uma criança na Costa do Marfim que nunca provou chocolate. Desde o café do milionário benfeitor George Clooney até ao brinquedo chinês do Natal, tudo assenta sobre o facto insofismável da globalização. Pagar o menos possível por mais coisas e trazê-las até nós, os ricos, pelo meio mais barato. Dar cabo do planeta é apenas uma das fases do processo civilizacional do crescimento económico.
Se perguntarem a um desgraçado da Índia ou do Bangladexe se quer emigrar para o Catar depois de saber o que o Catar lhe faz, ou se perguntarem a uma pobre filipina se quer emigrar para a Arábia Saudita depois de saber o que lhe farão, refém de uma família ou vítima de espancamentos, responderão sim. Tudo menos ficar onde estão. E da próxima vez que a hipocrisia coletiva se banhar nas águas cálidas do Mediterrâneo ou atravessar o Canal da Mancha deve pressagiar um cemitério marinho. São muitos milhares de corpos comidos pelos peixes e vindos de África e da Ásia com o sonho de uma vida na Europa.
EXPRESSO(Lisboa) – 25.11.2022
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