Por JOSÉ PEDRO CASTANHEIRA
É um dos maiores mistérios da Guerra Colonial e ao longo dos anos foram exploradas várias pistas
A 20 de janeiro de 1973 — completam-se exatamente hoje 50 anos —, Amílcar Cabral foi assassinado a tiro à porta de sua casa, em Conacri, a capital da República da Guiné. Mais do que secretário-geral do PAIGC, era o principal líder dos movimentos de libertação das colónias portuguesas, em guerra desde 1961 contra o regime de Lisboa. Passados 20 anos, para assinalar a efeméride, publiquei neste semanário uma extensa reportagem que desenvolvi mais tarde num livro a que dei um título interrogativo: “Quem Mandou Matar Amílcar Cabral?”. Desde então, muito se investigou, discutiu e escreveu, especialmente em Portugal e Cabo Verde, sobre o crime que consequências mais gravosas teve durante os 13 anos da absurda e inútil Guerra Colonial em Angola, Moçambique e Guiné. Mas será que, meio século depois, à luz do muito que, entretanto, se foi sabendo, ainda faz sentido manter o ponto de interrogação?
A reportagem de 1993 levou-me à Guiné-Bissau e a Cabo Verde, mas também ao Senegal e à República da Guiné, onde visitei o local do crime. Entrevistei meia centena de pessoas: portugueses, guineenses, cabo-verdianos, militares, polícias, guerrilheiros, políticos, diplomatas, historiadores. Conhecendo-se desde sempre quem disparara a rajada assassina (o guineense Inocêncio Cani, um ex-dirigente do Comité Central do PAIGC, que comandava a sua Marinha de Guerra), havia que procurar o autor moral do crime: quem mandou matar, que interesses o moviam, com que objetivos, como organizou a trama, quais os cúmplices e aliados. A reportagem sobre o maior mistério da Guerra Colonial desenvolvia quatro hipóteses plausíveis, muito provavelmente interligadas: 1 — uma ação desesperada dos militares portugueses na Guiné-Bissau, comandados pelo general António de Spínola, em vias de perder a guerra; 2 — uma operação especial montada pelos serviços secretos portugueses (a PIDE/DGS), para decapitar o inimigo; 3 — um salto em frente do Presidente da República da Guiné, Sékou Touré, que via Cabral como um rival, que aspirava à formação de uma “Grande Guiné” e não olhava a meios para se desembaraçar de adversários e inimigos, verdadeiros ou supostos; 4 — O explodir da tensão existente no interior do PAIGC entre a ala combatente, formada na sua esmagadora maioria por guineenses, e o pequeno grupo dirigente, liderado por cabo-verdianos.
A reportagem, que não era conclusiva, foi distinguida com os dois principais prémios de jornalismo existentes à época. Desafiado pelo editor Francisco Vale, da Relógio D’Água, avancei para um livro, para o que fiz uma nova ronda de entrevistas e sobretudo acedi a dois importantíssimos arquivos. Por um lado, o Arquivo da PIDE/DGS, à guarda da Torre do Tombo, que, entretanto, fora parcialmente aberto ao público; por outro, o Arquivo Histórico-Diplomático, do MNE, para o que contei com uma interpretação generosa da legislação por parte do ministro Durão Barroso. Os novos dados, numerosos, não permitiram, contudo, uma revalorização de nenhuma das quatro pistas equacionadas.
VERSÃO OFICIAL POSTA EM CAUSA
O livro saiu em dezembro de 1995 (viria a ter mais duas edições e seria traduzido para italiano e francês). Na sessão de lançamento tive o ensejo de apresentar o marechal Spínola e o meio-irmão de Amílcar Cabral, Luís Cabral. Inimigos jurados durante a guerra, ambos ex-Presidentes dos seus países (o primeiro de Portugal, o segundo da Guiné-Bissau), não se conheciam pessoalmente e assistiram à sessão lado a lado.
O livro provocou uma enorme polémica. Principalmente porque questionava a versão oficial do crime, em que coincidiram quer o Presidente Sékou Touré, quer o PAIGC, e que a generalidade das organizações anticolonialistas aceitou pacífica e acriticamente. Segundo esta narrativa, a conspiração fora urdida pelo inimigo, o regime colonial, através do comando militar de Bissau, e executada pela PIDE/DGS, que se infiltrara no quartel-general do PAIGC em Conacri. Uma versão reforçada pelo relato de dois jornalistas. O primeiro foi o moçambicano Aquino Bragança, o único jornalista estrangeiro autorizado a fazer uma investigação in loco. O que Aquino escreveu, um mês depois, na revista “Afrique-Asie”, passou a ser uma espécie de verdade oficial e influenciou muito do que nos anos seguintes se disse sobre a matéria (e ainda hoje, como ficou patente em algumas intervenções num colóquio internacional realizado há uma semana na Assembleia da República). Sendo um importante quadro da Frelimo, Aquino não era um observador independente. Como assinalou em 2007 António Tomás, na sua biografia de Cabral “O Fazedor de Utopias” (Tinta-da-China), as fontes de Aquino “eram maioritariamente as confissões dos conspiradores arrancadas através de tortura”. Para aquele antropólogo e jornalista, Aquino “estava mais preocupado em forjar uma verdade do que propriamente em relatar a verdade dos factos”.
O outro jornalista foi o soviético Oleg Ignatiev, que escreveu vários livros sobre a luta de libertação na Guiné-Bissau, designadamente o “Três Tiros da PIDE — Quem, Porquê e Como Mataram Amílcar Cabral” (Prelo, 1975). Colaborador dos principais jornais da União Soviética, tudo indica que Ignatiev pertenceria aos serviços secretos (o KGB), o que lhe retira a indispensável credibilidade. Especialmente controversa foi a hipótese de um envolvimento de altos responsáveis guineenses do PAIGC, incluindo Osvaldo Vieira, um dos seus mais míticos comandantes. Se é certo que escapara aos fuzilamentos que se seguiram aos três inquéritos realizados na sequência do assassínio (um primeiro, pelas autoridades de Conacri, um segundo a cargo de uma Comissão Internacional de Inquérito, e finalmente um conduzido pelo próprio PAIGC), a verdade é que Osvaldo Vieira, primo-irmão do futuro Presidente Nino Vieira, caiu completamente em desgraça, vindo a morrer meses depois.
O PAPEL DE SPÍNOLA E DA PIDE/DGS
O livro foi apresentado em Cabo Verde, onde fui acusado de tentar “branquear” o papel dos militares e da PIDE/DGS. Muitas das críticas, que persistem, podem condensar-se no que Onésimo Silveira, ex-embaixador de Cabo Verde em Lisboa, disse em 2016 numa entrevista ao jornalista José Vicente Lopes: o livro “faz todo o exercício (…) para ilibar, no fundo, o papel dos portugueses, do Spínola em particular” (“Uma Vida, um Mar de Histórias”, Spleen). Já na Guiné-Bissau, onde estive várias vezes em reportagem, o livro nunca chegou a ser apresentado.
Nos anos imediatos, não deixei de aprofundar a investigação, nas suas quatro vertentes. Voltei ao interminável Arquivo da PIDE/DGS, onde constatei, com surpresa, que os serviços secretos se tinham infiltrado a um altíssimo nível na direção do PAIGC, com acesso direto a Cabral. Todavia, nada encontrei (nem muitos outros investigadores que também queimaram as pestanas na Torre do Tombo) que atestasse que o atentado resultara de uma operação especial planeada pela polícia política — como fora, por exemplo, a famosa “Operação Outono” que vitimou Humberto Delgado. Dir-se-á que em operações do género não se deixam registos comprometedores. Teoricamente assim deveria ser. Mas não com as delegações da PIDE da Guiné e de Cabo Verde, que deixaram um inapagável rasto documental em muitas outras tentativas, todas fracassadas, com idêntico objetivo. Por outro lado, nos depoimentos de vários antigos operacionais da DGS no terreno, sempre foi negada a sua autoria. O mais recente testemunho foi do ex-inspetor Fragoso Allas, escolhido por Spínola para chefiar a delegação da DGS em Bissau. Allas manteve-se durante décadas discreto e quase mudo. Rompeu o silêncio em 2017 com uma extensa entrevista à historiadora espanhola María José Tíscar (“A PIDE no Xadrez Africano”, Colibri), repleta de novidades. Aos 83 anos, sem nada a ganhar ou a perder, negou a participação na conjura. “Nunca tive instruções nesse sentido”, jurou.
Na Guiné, onde nasceu e está enterrado, e à exceção de um círculo cada vez mais restrito, parece ser uma figura praticamente ignorada, um nome quase esquecido
E do comando militar de Bissau? Decapitar o comando inimigo teria todo o sentido num ambiente de guerra aberta. E Spínola não o excluiu — como ficou provado em 1970, com a “Operação Mar Verde”, o assalto a Conacri chefiado por Alpoim Calvão. A liquidação de Cabral e de Sékou Touré foram os alvos cimeiros da mais audaciosa operação das Forças Armadas portuguesas durante os 13 anos de guerra. Como acentuou Bernardo Futscher Pereira (em “Orgulhosamente Sós. A Diplomacia em Guerra”, D. Quixote, 2022), tratou-se da “última cartada para obter uma vantagem militar na Guiné, mudando o regime em Conacri e decapitando o PAIGC”. Consequência ou não do fracasso da “Mar Verde”, percebendo que a guerra já não tinha uma solução militar, a estratégia de Spínola mudou radicalmente.
Todos (ou quase todos) os oficiais com responsabilidades em Bissau já abriram os seus baús de memórias. Memórias muito variadas, por vezes contraditórias, onde se denotam velhos ódios e ajustes de contas, mas que não incluem a eliminação do comandante inimigo, pelos menos em 1973. Com efeito, desde 1971 que Spínola se virara afanosamente para a busca de uma solução política, multiplicando-se em iniciativas para chegar à fala com Amílcar Cabral.
Aliás, também não se conhece documentação militar que incrimine a tropa. O último acervo divulgado (só em 2019) foram as atas do Conselho Superior de Defesa Nacional, com a classificação de “muito secreto”. Apesar de este órgão acompanhar todo o evoluir da guerra nos três teatros de operações, delas não consta qualquer alusão à morte de Cabral. Dir-se-á, portanto, que dos arquivos portugueses e das memórias dos seus principais intervenientes, já tudo ou quase tudo se conhece.
“TODOS OS GUINEENSES ESTAVAM A PAR”
De Sékou Touré sabe-se que recebeu no palácio os assassinos de Cabral ainda o cadáver estava quente, após o que os enviou para a tenebrosa cadeia de Camp Boiro, onde foram interrogados e torturados por forma a alterarem o sentido do seu depoimento — como o testemunhou o cabo-verdiano Alcides Évora (Batcha), convocado para servir de intérprete da polícia de Conacri. Dos arquivos de Conacri nada se conhece. O mais provável é que nem haja. Afinal de contas, Ahmed Sékou Touré, o primeiro Presidente da Guiné, governou com mão de ferro desde 1958 até à sua morte, em 1984, cotando-se como um dos maiores déspotas africanos do período das independências. Sabedor das suspeitas do Presidente do Senegal de que Sékou Touré não seria alheio ao crime, procurei entrevistar Leopold Senghor, munido até de uma carta pessoal do então Presidente Mário Soares. Sem sucesso.
Vários serviços secretos e similares ocidentais estarão certamente na posse de informações sobre quanto rodeou a noite de 20 de janeiro de 1973. Especialmente os franceses. Antiga colónia de França, a República da Guiné nunca deixou de estar na mira de Paris, que aliás tudo fez para derrubar Sékou Touré. Em 2003, com o empenho do então embaixador de Portugal em Paris, António Monteiro, pedi à ministra da Defesa de França, Michèle Alliot-Marie, autorização para consultar o arquivo do SDECE. Sem êxito: ainda não estavam desclassificados. O mesmo aconteceu com o requerimento que fiz em Itália, cuja embaixada representava os interesses da França. E dos arquivos do Vaticano nem vale a pena pensar…
María José Tíscar, porém, teve acesso ao arquivo diplomático da Suíça. Num relatório enviado para Berna, baseado em fontes da Comissão Internacional de Inquérito, o encarregado de negócios em Conacri opinou a 27 de janeiro de 1973: “Devemos procurar as causas num conflito racial, os negros do PAIGC acusando os seus parceiros mestiços de monopolizar o poder.”
Por sua vez, Jorge Santos Carvalho (em “As Relações Jugoslavo-Portuguesas”, IUC, 2012) acedeu a uma extensa “informação” de fevereiro de 1973 de dois diplomatas jugoslavos que estiveram nas exéquias de Cabral, tendo detetado “um largo descontentamento entre os ativistas e combatentes do PAIGC” face ao secretário-geral. Os dois diplomatas, com experiência na Guiné, foram ao ponto de afirmar que “a condenação do assassínio” fora “claramente mais fraca” nos territórios libertados do que a “solidariedade internacional” expressa no funeral. O mesmo autor revela um relatório de Agostinho Neto, de fevereiro de 1973, apresentado às autoridades da Jugoslávia no âmbito de uma visita àquele país. O líder do MPLA fora ao funeral e diz que a Comissão Internacional de Inquérito, que integrou, “ouviu cerca de 500 membros do PAIGC que se encontravam em Conacri”, dos quais “só 20 se exprimiram abertamente por Cabral”, enquanto “352 declararam-se contra”. Ou seja, espanta-se Neto, neste insuspeito relatório, “quase todos os ativistas” do PAIGC em Conacri “sabiam o que iria acontecer”.
O mesmo verificou Onésimo Silveira, que representava o PAIGC na Suécia e que voou de imediato para o funeral. Na sua já mencionada entrevista, estranha: “Nenhum cabo-verdiano sabia que se ‘complotava’ contra Cabral, ao contrário de todos os guineenses em Conacri, que estavam a par.”
UMA CENTENA DE FUZILADOS?
Durante muitos anos a colaboração de responsáveis guineenses do PAIGC no crime foi um verdadeiro tabu — ainda hoje o é na Guiné-Bissau, contrariamente a Cabo Verde. Dos interrogatórios efetuados pelas três comissões de inquérito nada se sabe. Muitas das confissões foram arrancadas sob tortura. As cassetes áudio e/ou as respetivas transcrições desapareceram. E no entanto, como anotou, meticuloso, Aquino Bragança, só pela Comissão Internacional de Inquérito foram interrogadas 465 pessoas, num universo de cerca de seis centenas (o que significa que, exceção feita a crianças, estudantes, algumas mulheres e guerrilheiros hospitalizados, toda a gente foi inquirida). O resultado foram 43 acusações de participação no golpe, 9 de cumplicidade e 42 de suspeitos. Todos eram guineenses. Entregues ao PAIGC, levados para as várias frentes de luta no interior, foram julgados sumariamente e executados. Nunca se soube a lista dos fuzilados, nem sequer o número. Na minha investigação, identifiquei 23 nomes, entre os quais o matador, Inocêncio Cani, e os alegados cabecilhas, Momu Touré e Aristides Barbosa, que Spínola libertara do campo de concentração do Tarrafal e certamente que trabalhados pela DGS de Bissau. Daniel dos Santos (em “Amílcar Cabral: um outro Olhar”, Chiado, 2014), vai um pouco mais longe e elencou 27 executados. O Presidente Nino Vieira, que entrevistei em Bissau, falou de uma “matança de muita gente”. Um cálculo que parece merecer algum consenso aponta para uma centena de fuzilados. Não há notícia de nenhum cabo-verdiano.
Nino Vieira tomou o poder em 1980, através de um golpe de estado, que afastou o Presidente Luís Cabral, meio-irmão de Amílcar. Consumada a rutura entre a Guiné-Bissau e Cabo Verde (com a formação, neste país, de um novo partido, o PAICV), começou a falar-se veladamente do envolvimento do próprio Nino, o que ele sempre desmentiu. A acusação ganhou mais força durante a guerra civil da Guiné, de 1998/99, que opôs uma Junta Militar a Nino Vieira. Na única entrevista que deu, em novembro de 1998, o líder da Junta Militar, brigadeiro Ansumane Mané, disse-me: “Talvez seja verdade.” Braço-direito de Nino durante 37 anos, Ansumane Mané descreveu o pânico que se apoderou daquele quando evocou a vaga repressiva que se seguiu ao crime.
TRÊS MEMBROS DA COMISSÃO INTERNACIONAL DE INQUÉRITO
Durante anos procurei recolher o testemunho de membros da Comissão Internacional de Inquérito, pois seriam, a meu ver, os observadores mais independentes. Nunca consegui. Abordei o embaixador de Cuba em Conacri, Óscar Oramas, que muito mais tarde escreveu as suas memórias (“Amílcar Cabral Para Além do seu Tempo”, Hugin, 1998). Oramas não só confirmou as más (mesmo péssimas) relações entre Osvaldo Vieira e Amílcar Cabral, como apontou a sua presença na cena do crime, “escondido atrás daquelas árvores”.
Tentei falar com o embaixador da Argélia, Messaudi Zitouni, munido de uma carta de recomendação de Manuel Alegre. Nunca obtive resposta. Alegre e Zitouni conheciam-se de Argel, quando o português era a voz da Rádio Voz da Liberdade. O português também fora às exéquias de Cabral, que homenageara à sua maneira: um poema, a que deu o nome de “Cabral ‘chefe di guerra’”, policopiado e distribuído na cerimónia — e de que encontrei um exemplar no Arquivo da PIDE/DGS. Em conversa com Alegre, recordou um encontro, seu e de Piteira Santos, com Cabral, num hotel argelino, já nos anos setenta, com o chefe guerrilheiro “a falar com um ar estranho, os óculos puxados para cima da testa: ‘Se um dia for assassinado, sê-lo-ei, provavelmente, por um homem do meu povo, do partido e talvez da primeira hora.’”
Por fim, contactei Joaquim Chissano, pessoalmente, por duas vezes: uma em Portugal, era ainda Presidente de Moçambique, outra em Maputo, já deixara o cargo. Disse-me que reservava o relato para as suas próprias memórias. Até agora só saiu o primeiro volume (“Vidas, Lugares e Tempos”, Texto), que termina em 1963. Foi lançado em 2010, ignora-se quando sairá o próximo e se abordará a morte de Cabral.
Nos últimos anos têm sido publicados numerosos trabalhos em torno de Cabral — mais do que sobre qualquer outro líder nacionalista, incluindo Agostinho Neto ou Samora Machel. A bibliografia é vastíssima: teses de mestrado e doutoramento, ensaios, memórias, biografias, catálogos, antologias, eu sei lá. Até romances, como “A Última Lua de Homem Grande”, de Mário Lúcio Sousa (D. Quixote, 2022). Já mencionei alguns, mas sempre direi que a melhor e mais completa biografia é a de Julião Soares Sousa, “Amílcar Cabral. Vida e Morte de um Revolucionário Africano” (Veja, 2012). Tese de doutoramento na Universidade de Coimbra, Julião conclui o capítulo sobre o assassínio dizendo não haver “margem para dúvidas” de que “foi obra de dissidentes do PAIGC, com uma grande probabilidade de ter sido também um complô em grande escala, que ultrapassa as fronteiras da Guiné-Conacri”.
O LIVRO “TESTAMENTO” DE ARISTIDES PEREIRA
Especificamente sobre a morte, há que relevar a série da RTP “A Guerra”, de Joaquim Furtado. O episódio nº 25, emitido em 2012, é-lhe inteiramente dedicado. Pedro Pires, foi um dos muitos entrevistados. Ao falar nas execuções, da forma frontal e corajosa que é seu timbre, pergunta a dado passo: “Quais são os traidores que não foram punidos? Essa é a única dúvida que fica.” Fiel às suas convicções de sempre, o ex-Presidente de Cabo Verde continua, no entanto, a pensar que o crime foi “comanditado pelo Governo colonial e organizado pelos sequazes da PIDE/DGS e demais agentes do colonialismo, planeado enquanto última ‘solução militar’ de salvação do império em risco de derrocada” — como afirmou no já referido colóquio.
Uma resposta àquela pergunta de Pedro Pires pode ser encontrada na longa entrevista dada por Aristides Pereira a José Vicente Lopes (“Minha Vida, Nossa História”, Spleen, 2012). Primeiro Presidente de Cabo Verde, cargo que exerceu durante 16 anos, Aristides já tinha publicado as suas memórias da luta de libertação (“O Meu Testemunho”, Editorial Notícias, 2003). Publicada postumamente, encarada como uma espécie de testamento, é uma entrevista que qualquer jornalista ou historiador gostaria de ter feito, porque o sucessor de Cabral à frente do PAIGC fala sem filtros, com uma clareza e limpidez totais, acentuando de forma porventura definitiva a responsabilidade de um importantíssimo sector da ala guineense na eliminação de Cabral. “Para todos os efeitos, goste-se ou não, o Amílcar foi morto como cabo-verdiano”, acusa. Não lhes chamando traidores, identifica muitos dos seus camaradas guineenses, que “sabiam da conspiração e nada fizeram para travá-la”. Nomes que viriam a ocupar os mais altos cargos não só do PAIGC como do Estado da Guiné-Bissau. A começar por Nino Vieira, que foi Presidente da República, passando por três futuros primeiros-ministros — Francisco Mendes (Xico Té), Vítor Saúde Maria e Carlos Correia, vários ministros (como Fidélis Cabral Almada) e até um presidente do Supremo Tribunal de Justiça (João Cruz Pinto). Ou seja, todas figuras da cúpula do Estado guineense.
Morto aos 49 anos, Amílcar Lopes Cabral foi uma figura grande da história contemporânea de África e do então chamado Terceiro Mundo. Historiadores houve que o chegaram a comparar, na estatura moral e política e na dimensão estratégica, a Nelson Mandela. Em 2020, a “BBC World Histories Magazine” promoveu um inquérito entre os seus leitores sobre quem seria o maior líder da História. O mais votado, a partir de uma lista prévia, foi o marajá Ranjit Singh, o líder do império Sikh do século XIX. Em segundo lugar, e surpreendentemente, à frente de papas, monarcas, presidentes e imperadores, ficou… Amílcar Cabral, o pai da independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde.
Na Guiné, onde nasceu e está enterrado, e à exceção de um círculo cada vez mais restrito, parece ser uma figura praticamente ignorada, um nome quase esquecido. E quem voar para a Guiné, o primeiro nome com o qual se depara é o de Osvaldo Vieira, pois assim continua a chamar-se o aeroporto internacional de Bissau. O que não deixa de ser uma suprema ironia...
EXPRESSO(Lisboa) – 20.01.2023