O caldo foi deitado ao chão. As negociatas futebolísticas extravasaram a razão e o "dinheiro falou mais alto". Desta vez, até uma Comissão de Inquérito foi criada e cinco jogadores foram suspensos preventivamente. O estranho é que está confusão ganha espaço num momento que o Secretário de Estado do Desporto, Gilberto Mendes marcou uma reunião para dentro de dois dias e criou também uma Comissão de Inquérito. Mendes pretende exigir explicações sobre o "escândalo de Argel", que opôs os jogadores e a Federação dirigida por Faizal Sidat que 'esqueceram o objectivo central da missão' e se desentenderam, tendo manchado o "bom nome de Moçambique" no panorama desportivo e político.
Portanto, na sexta-feira (03) quando o País celebrava o rotativo dia dos ‘heróis moçambicanos’, eis que a Direcção Executiva da Federação Moçambicana de Futebol (FMF), através do Comunicado nº 009/FMF/D/2023 informou que haviam criado uma Comissão de Inquérito e que cinco jogadores estão suspensos.
Segundo consta no documento em alusão, a FMF “reuniu-se virtualmente em sessão ordinária para analisar minuciosamente os episódios registados na Argélia com a Selecção Nacional (“Mambas”) durante a sua participação na fase final do Campeonato Africano das Nações CHAN Argélia 2022.”
Da análise realizada, a Direcção Executiva constatou em primeira instância que os atletas da Selecção Nacional excederam nas suas reivindicações, chegando mesmo a expor de forma leviana, o bom nome de MOÇAMBIQUE e da SELECÇÃO NACIONAL. Os 23 atletas exteriorizaram um comportamento grosseiro, irresponsável e de chantagem, recusando-se inicialmente a ir a jogo nos quartos-de -final e posteriormente, a deixar o hotel para iniciar a viagem de regresso a Maputo, no dia 01 de Fevereiro de 2023. Os atletas extravasaram os princípios éticos e de boa conduta desportiva em vigor na FMF, manchando os símbolos da Pátria Amada.
Pelo acima exposto, a Direcção Executiva deliberou o seguinte:
- Repudiar, de forma veemente, a atitude grotesca e infame dos atletas da SELECÇÃO NACIONAL pela reivindicação protagonizada em território alheio, pondo em causa a Excelência do nosso País e a credibilidade da Federação Moçambicana de Futebol (FMF), perante o mundo, instituições similares, e a opinião pública nacional e internacional.
- Nomear uma comissão de inquérito que se encarregará de num espaço não superior a três meses, averiguar os factos e as circunstâncias que ditaram à prática de actos de indisciplina no seio da SELECÇÃO NACIONAL, na Argélia, durante a disputa do Campeonato Africano das Nações (CHAN-2023). A referida comissão, presidida pelo Dr. José Abudo, integra o Dr. Pedro Sinai Nhatitima, Dr. Sidónio Chavisse, Dr. Suleman Fonseca, Dr. Amílcar Andela e Dr. Zefanias Jonas. Como parte dos seus trabalhos, esta comissão irá ouvir os demais membros integrantes na comitiva da FMF e irá trabalhar no sentido de apurar responsabilidades para posterior tomada de medidas disciplinares pelo órgão competente da FMF.
iii. Não dar provimento ao suposto Termo de Compromisso, dado que o mesmo não tem valor jurídico sem uma aprovação da Direcção Executiva da FMF. Ademais, os representantes dos atletas coagiram e ameaçaram o chefe da delegação, Sr. Jorge Bambo (Vice-presidente da Administração e Finanças), a assinar o referido Termo de Compromisso, caso contrário não deixariam o hotel de regresso a Pátria Amada.
- Suspender preventivamente os atletas Isac De Carvalho, Stélio Ernesto, Francisco Muchanga, Shaquille Nangy e Saddan A. Guambe, e o assistente do seleccionador, Eduardo Jumisse, dos trabalhos da Selecção Nacional até à conclusão do inquérito.
- Comunicar oficialmente e com pedido de desculpas à CAF, a Comissão Organizadora da Competição, bem como a Federação Argelina de Futebol sobre os acontecimentos ocorridos em Argel no seio da Selecção Nacional.
Em reacção, um texto publicado nas redes sociais, atribuído aos jogadores da selecção nacional, refere o seguinte: “Somos jogadores dos Mambas, não capitães da equipa, servimos desta para pedir desculpas à todos os moçambicanos pelo sucedido na Argélia, envergonhamos a todos e não merecemos nenhum perdão nem de Deus.”
Prosseguindo, escrevem que “somos humanos e susceptíveis a falhas, por isso não deixaremos de pedir perdão. Mas porque sabemos que o governo abriu uma Comissão para nos investigar, nós os ‘jogadores não capitães’ queremos explicar o sucedido, porque involuntariamente acabamos por estar envolvidos neste problema.”
“De facto, nós exigimos 150.000 meticais de prémio pela qualificação aos quartos de finais e isso pedimos muito antes do assunto vir ao público. Foi logo depois do primeiro jogo, quando vimos a possibilidade de apuramento e falamos com a Federação, mas ninguém quis nos dar ouvidos. Depois do jogo contra Líbia voltamos a falar com Paito, mas ele disse que deveríamos esperar o jogo contra Argélia para falarmos e depois disso foi o que se viu porque as voltas da Federação fizeram encher a nossa paciência enquanto grupo”, revelam os jogadores.
Entretanto, “reunimos no quarto do Mister Jumisse e o Mister Chiquinho, onde traçamos a estratégia para reclamarmos o prémio de 150.000 meticais. E a ideia era não irmos ao jogo caso não pagassem o dinheiro. Depois tínhamos de tirar o assunto para os senhores jornalistas Alfredo Jr, David Nhassengo e João Chivale, porque os que vieram connosco não eram da nossa confiança, uma vez que bebiam constantemente com os dirigentes. Só que o Mister Jumisse disse que estes jornalistas não eram de confiança, porque comem na mão do Presidente da Federação e daí decidimos usar o Paulo Monteiro, porque ele disse que já tinha trabalhado com Fred Jossias e eram amigos. Assim como, iria guardar o segredo e lançar o assunto para pressionar Faizal Sidat. Acabamos aceitando tudo isso porque confiamos nele.
“Quando tudo isso passou e perdemos o jogo contra o Madagáscar, porque o Mister fez o onze com os capitães e ficamos surpresos, mas isso agora não interessa porque depois de voltamos para Níger, reunimos no quarto do Mister Jumisse para cuidar da estratégia e exigir os 300 mil para nos dividirmos, uma vez que sabíamos que graças ao nosso suor à federação iria receber 400 mil USD, mas nós tivemos medo de falar e Paito que sempre estava do nosso lado pediu que fosse o Mister Chiquinho, para ele sozinho ir falar disso com a federação e o governo, como forma do assunto ter mais relevância e foi o que aconteceu. Foi Mister Chiquinho que falou em nosso nome um dia antes da viagem a Qatar e ficamos surpresos quando ele lá falou de 60%, quando a estratégia era exigir 300 mil USD, mas não falamos porque ele é nosso líder e a estratégia foi dele. Só que não foi ele que falou sobre ‘não abandonar o hotel e não subir o avião’, mas foi ele que disse aos capitães para mandarem toda a equipa não descer, enquanto a federação não escrever um documento a dizer que vai nos dar 60%. Só estranhamos que o assunto depois veio para à imprensa, porque também decidimos que isso não era para vir para à imprensa, uma vez que nos faria perder a razão e a pressão que estávamos a fazer a federação perderia sentido. Mas não temos certeza, se foi o Paulo a mandar mensagens para Fred Jossias, no entanto a certeza que temos é que ele, era o nosso canal com Fred Jossias e chamamos-lhe atenção, porque não estávamos a gostar.
Infelizmente, “enquanto tudo isso acontecia, andaram a ameaçar nossas famílias em Moçambique e fomos recebendo mensagens de ameaças estranhas como formas de pararmos de criar confusão, entretanto, já estávamos envolvidos por sermos um grupo, mas senão fossem às ordens dos Misters, nós nem teríamos falado disto, porque sabemos o que significa jogar para Moçambique. Por exemplo: Telinho assaltaram à casa dele e a esposa de Isac ameaçaram-lhe perder emprego já que eram eles que falavam como capitães.”
Deste modo, referem os jogadores, “nós os ‘não capitães’ queremos pedir desculpas ao povo moçambicano e pedir para não nos envolverem nessa Comissão Inquérito que criaram e pedir para pararem de ameaçar nossas famílias, porque as pessoas que lideraram tudo isto conhecemos (…).”
Reagindo, o Jornalista desportivo e jurista, João Chicote escreveu o seguinte: “em Moçambique, quando um atleta profissional é convocado para representar a selecção de sua modalidade, o que acontece é uma interrupção do seu contrato de trabalho com o seu empregador (clube) para uma prestação de serviço de natureza civil.
O sistema jurídico moçambicano não afirma que a cedência do atleta para a selecção caracteriza uma interrupção do contrato de trabalho com o empregador (clube), aliás, não existe uma lei que regula tal facto.”
Chicote, que publicou esta análise num grupo de WhatsApp, afirmou que “no Brasil, por exemplo, a lei do contrato desportivo deixa livre a entidade convocante (federação da modalidade) e a entidade cedente (clube empregador) para acordarem sobre a participação do jogador.”
“O tempo de serviço do atleta na selecção carece, naturalmente, da formação dos elementos fáctico-jurídicos da relação de emprego, quais sejam: pessoalidade, subordinação, remuneração (onerosidade), não eventualidade e alteridade”, explica Chicote.
Acrescentando, João Chicote defende que “nos serviços à Selecção Nacional, os atletas convocados não são obrigados a servir à Selecção (o mesmo regime aplica-se na selecção portuguesa), o que sucede com a pessoalidade e subordinação, pois os jogadores simplesmente podem recusar a convocação, seja por acto volitivo (vontade própria), como fez Simão Mathe, seja por actos impeditivos, como lesões.”
Indo mais, o Jornalista e Jurista avança que “deste entendimento é de repudiar os actos praticados pelos jogadores em Argel. Não se conformado com as condições existentes, entre as várias alternativas está ao dispor dos atletas a recusa à convocação. O comportamento poderia ter sido outro na busca de mecanismos para fazer valer os seus direitos.”
Chicote propõe que “outrossim, diante de tanta confusão, seria interessante que o nosso legislador (Assembleia da República) e com o auxílio da Secretária do Desporto lançassem as ideias para a criação duma lei do contrato desportivo, que poderia estabelecer entre vários assuntos, as responsabilidades das federações desportivas, obrigações, por exemplo, deva indemnizar o clube (empregador) pelos encargos trabalhistas durante o período de cedência do atleta para a selecção nacional, independentemente da retribuição da prestação de serviço avençada (prémios de jogos) entre a entidade convocadora e o jogador cedido.”
Chicote repisa na sua análise, afirmando que para “além disso, seria de pensar um modelo em que a federação teria responsabilidade em recuperar o atleta lesionado ou indemnizar o clube cedente para o custear dos prejuízos com lesões adquiridas nas disputas pelas selecções nacionais.”
A partir do Campeonato do Mundo de 2014 no Brasil, a FIFA dispõe em seus regulamentos a responsabilidade das federações sobre acidentes sofridos pelos atletas durante o Mundial, determinando a contratação de seguros (art. 3 do Regulamento da Copa do Mundo FIFA 2022 com remissão para o art. 2 do anexo 1 do Regulamento de Transferência de Jogadores de Outubro de 2022.
‘O caso de Argel levanta muitas questões cujas soluções duradouras podem ser contempladas com o advento de uma lei que regula o exercício do trabalho desportivo. O Parlamento, a SED, os jogadores, treinadores, a AMID, e outros intervenientes no mundo desportivo têm responsabilidades acrescidas no estabelecimento deste quadro”, concluiu Chicote. (INTEGRITY)
In "ESCÂNDALO NO FUTEBOL MOÇAMBICANO" (integritymagazine.co.mz)