Por Elisio Macamo
Ninguém nasce democrata. E mesmo nascendo e crescendo numa democracia não há nenhuma garantia de que se seja automaticamente democrata. A razão é simples. Ser democrata não é uma essência. É um processo, sobretudo um processo de maturação política. É trabalho de todos os dias. Não existe, portanto, uma receita com os ingredientes da democracia que precisamos de misturar para sermos democratas. Existe, isso sim, princípios gerais em relação aos quais nos podemos orientar, e na base dos quais adoptamos este ou aquele comportamento, esta ou aquela postura, enfim, exercemos a cidadania.
Eis alguns desses princípios em jeito de dicas para ajudar quem gostaria de fazer o esforço de fingir ser democrata:
- Na democracia liberal, o principal princípio é o da tolerância. Este é um reconhecimento tácito do pluralismo de valores e, portanto, da natureza particular do que eu considero bom ou mau. Ser tolerante não significa concordar com tudo o que os outros fazem. É aceitar o direito que os outros têm de serem o que são, ou de valorizarem o que valorizam desde o momento que isso não interfira com o direito que os outros têm de merecer tolerância. Gostar ou não do partido no poder é uma opção individual e, em princípio, devia ser tolerada;
- Existe o princípio da igualdade que não significa igualdade absoluta. Significa apenas o direito que cada pessoa tem de ser tratada como igual. Na prática política, isso traduz-se na criação de mecanismos políticos, jurídicos e institucionais que penalizem tudo o que na esfera pública impeça certas pessoas de usufruírem das mesmas oportunidades. Só para usar um exemplo actual: se certos grupos políticos podem realizar manifestações (marchas de saudação da mediocridade) e outros não (porque ainda podem, quem sabe, fazer golpe de estado), então viola-se o princípio da igualdade;
- Há também o princípio da inalienabilidade, o principal sustento de direitos humanos na democracia liberal. Este princípio significa essencialmente o reconhecimento de um conjunto de direitos (à vida, à liberdade e à prossecução da felicidade) que não são uma dádiva do soberano, mas sim algo que é intrínseco à condição de cidadão.
Este princípio é fundamental porque ajuda também a perceber algumas das obrigações do Estado e os limites do exercício do seu poder. Por exemplo, o direito à manifestação está sujeito ao princípio de inalienabilidade. Logo, a função do Estado não é de o respeitar sob certos condicionalismos, mas sim de garantir que ele seja usufruído. Se a nossa classe política percebesse isso, talvez entendesse porque a acção policial foi errada;
- Um princípio algo difícil de entender, e de pôr em prática, mas fundamental é o da equidade. Foi usado num sentido muito restricto pelo filósofo americano John Rawls na sua famosa obra com o título Teoria da Justiça. É a ideia de que um dos fundamentos da justiça deve ser a preocupação em garantir que nenhuma acção política leve à exploração de outrém, ou obrigue alguém a se submeter a algo ilegítimo. Sempre que gente crescida e “decente” – no judiciário, na polícia, no executivo ou no legislativo – se vê obrigada a pactuar com ilegalidades no interesse de quem detém o poder, viola-se o princípio de equidade;
- Muito próximo do princípio de equidade, porque tem a mesma autoria, é o princípio da diferença. Ele dispõe que as desigualidades são injustificadas, a menos que melhorem as condições para os menos favorecidos. Um exemplo: aquando do confinamento por causa da pandemia, verificou-se a violação deste princípio porque os menos favorecidos, portanto, aqueles que precisam de ir à rua para garantirem a sua subsistência, foram obrigados a ficar em casa sem que tivessem sido tomadas medidas para a melhoria das suas condições. Isto é, foi como se ao subtrair essas pessoas da via pública se garantisse a boa vida dos mais afortunados que ficavam desta maneira protegidos da infecção;
- Existe o princípio da razão que é uma maneira que encontrei de fazer valer algo enunciado por um filósofo alemão, Jürgen Habermas. É a ideia segundo a qual a sociedade dependeria da nossa capacidade de reconhecermos a validade das diferentes reivindicações das quais depende a cooperação social. Soa mais complicado do que é. Se alguém impede a realização duma manifestação, por exemplo, tem que apresentar razões assentes em critérios que todos podemos aceitar independentemente das nossas preferências políticas.
Um exemplo: a polícia usou uma manchete do jornal Evidências (que alertava para o perigo de golpe de estado em Moçambique) como prova de intenção deh golpe, mas omitiu o facto de que o jornal se referia a um golpe feito pelo próprio governo através da manipulação da legislação eleitoral. A Polícia de Moçambique violou o princípio da razão e revelou que não sabe ler e interpretar texto;
- Há também o princípio do reconhecimento que, algo polemicamente, recupero da fenomenologia do espírito de Georg Wilhelm Friedrich Hegel – sim, o tal que negou a historicidade aos africanos. Embora ele identifique a relação entre o senhor e o servo baseada na dominação e na subserviência ele diz também que esse não é o fim. O fim é o reconhecimento mútuo. O servo, que depende de si próprio, encontra auto-reconhecimento naquilo que ele faz para se preservar ao passo que o senhor só goza de reconhecimento se o servo lho der; o problema é que o reconhecimento que vem dum servo – portanto, de alguém que é instrumento de outrém – não vale grande coisa. É preciso que ele seja (como se fosse) igual para que haja valor no reconhecimento.
É assim que Hegel explica a emergência do Estado. Traduzindo isto na prática, diria que todo aquele que tem acesso aos recursos do poder – e, portanto, aos meios de sobrevivência baseados no usufruto privilegiado do bem comum – nuncah terá reconhecimento enquanto aqueles que estão longe do poder não forem (como se fossem) iguais.
Este é o dilema das elites detentoras do poder em Moçambique. Diferentes do vendedor ambulante que todos os dias come (se comer) aquilo que é fruto do seu suor, as elites políticas têm consciência de que são parasitárias em relação ao bem comum. Ser democrata é procurar criar condições para que o vendedor ambulante faça parte do Estado para que ele reconheça a legitimidade do conforto em que vivem as elites políticas.
- Mais um princípio essencial é o republicano. É na verdade a celebração da cidadania. Este princípio descreve a cidadania como o direito que todo o membro da sociedade tem de interpelar criticamente quem exerce o poder em nome de todos. Aqui posso ser mais sucinto. Sempre que um governante manifesta descontentamento porque alguém criticou, ou exige que a crítica seja “constructiva” ou tome em conta os “factores exógenos da economia mundial”, está a violar este princípio republicano e, por conseguinte, não está a ser democrata. Um poder que precisa de bobos da corte para se proteger da crítica é um poder autoritário;
- Um princípio que se tem revelado difícil nos nossos países é o princípio da falibilidade. Errar é humano. Logo, mesmo quem governa pode errar. Embora não se possa evitar completamente o erro, é possível criar condições de governação que permitam o controlo de quem governa (para diminuir a probababilidade de se errar).
A ideia por detrás deste princípio é garantir que tudo o que se faz politicamente corresponda a regras claras e transparentes. O espírito democrático manifesta-se no respeito que tanto os governantes quanto os governados têm pelas regras do jogo. Por exemplo, o hábito africano de usar o poder político para interferir com as regras (exigindo um terceiro mandato ou reformando a legislação eleitoral em benefício de quem está no poder) constitui uma violação grave do princípio da falibilidade;
- Finalmente, existe o princípio da prescindibilidade. É uma ideia simples. Embora todos os membros duma comunidade política sejam importantes, haverá sempre os que estarão mais aptos ag liderarem os outros. Isso, contudo, não significa que quem lidera num determinado momento seja imprescindível. Muitas vezes, o que faz com que líderes políticos africanos (e autoritários em todo o mundo) governem mal é o facto de se acharem imprescindíveis, isto é de pensarem que só eles (e mais ninguém) pode governar. A violação deste princípio é grandemente responsável pela instabilidade política que nos tem caracterizado.
A utilidade destas dicas está na aplicação deste conjunto de princípios na avaliação da política. A atitude da Polícia de Moçambique e do Governo em relação às manifestações do dia 18 de Março viola praticamente todos estes princípios. Quando um Ministro, por sinal também membro da Comissão Política, diz à imprensa que o seu partido é pela paz, ele revela num ápice a fragilidade das suas credenciais democráticas. Não consta aqui nenhum princípio de paz. Se ele tivesse dito que o seu partido é pela protecção dos direitos dos cidadãos teria evocado, num ápice, vários princípios aqui arrolados. A Polícia implicou com a paz porque ela e o governo que ela representa têm sérios problemas com a democracia.
Não há nada “europeu” nestes princípios, mesmo tendo citado apenas europeus. É tudo humano.