... se me deixasse vencer pelo estigma do bilhete de identidade.
Ainda sou do tempo em que a velhice era uma dignidade. Agora transformou-se num peso para alguns, num negócio abjecto para outros.
As imagens que nos chegam de "lares" onde se depositam aqueles que nos deram vida, nos ajudaram a crescer na vida, e que por causa das suas vidas muito ocupadas, entregam à morte sentada de ingratidão os seus velhos....provocam-me vómito.
Não são apenas os cães depois da época da caça. São homens e mulheres depois da canseira da estrada.
Seríamos todos mais jovens se não olhássemos tanto para o calendário, se não perdêssemos a curiosidade, mesmo pelas coisas mais simples da vida, se fizéssemos da velhice a "paródia da vida", como disse Simone de Beauvoir.
Quanto mais envelhecemos mais precisamos de ter que fazer, porque trabalhar é viver. Não que seja um emprego porque na fila estão tantos jovens que merecem o seu começo de vida.
Mas uma ocupação feita à medida das capacidades de cada um, em vez do ritual de morte prematura, da cama para o sofá, a televisão o dia inteiro, o olhar perdido , e o diálogo do silêncio onde se adivinha a saudade da família que talvez faça uma visita.
Adivinha-se nos pensamentos de alguns, o dilema de impossível realização...se a juventude soubesse e se eu pudesse....
E a indignação corta-me a alma quando sei, todos sabemos, dos velhos abandonados nos hospitais com moradas e números de telefone falsos por filhos que já não precisam dos pais. São pesos vivos, no desejo de que a curto prazo passem à condição de pesos mortos.
E as pobres pensões de reforma usurpadas pelos descendentes, os anéis, os fios com a cruz e os brincos do casamento? São os despojos das guerreiras e guerreiros que se bateram pela família nas lutas da vida.
Estas "pessoas" andam aqui ao nosso lado e parecem iguais a nós.
Mas não são... porque a monstruosidade pode ser camuflada com sorrisos de caridade.
A revolta marcada pelo nojo, está também nos lares que agora nos mostram os velhos a agonizar na fome, nas doenças, na falta de higiene, na ausência de carinho... porque ser velho dá lucro!
Ouvi um senhor dizer isso mesmo:- os velhos dão lucro e isso não tem mal nenhum.
Depende, caro senhor, depende da forma como se ganha dinheiro em função de uma tarefa que pode e deve ser uma missão.
Os velhos com conforto económico, podem envelhecer em bem-estar, embora a solidão esteja sempre lá.
Mas a miséria de um velho, não interessa a ninguém.
Este cancro das sociedades onde as pessoas têm prazo de validade, começa muito mais cedo do que muitos imaginam. Estar velho para produzir, só porque a antiguidade custa mais cara, e a experiência troca-se facilmente por um ordenado mais baixo, é a génese do lar com baratas, da carne podre, das borras de café e da escaras abertas e purulentas.
E depois vem a morte. No mundo animal, o elefante doente afasta-se da manada para ir morrer longe.
O homem, quanto mais velho está, mais procura companhia, até para se despedir do mundo, de mão dada com alguém a quem tanto deu.
Falo na primeira pessoa:- sou velho , mas não estou velho. Contudo há muitos anos que em diversas ocasiões houve senhores que me consideraram fora de prazo para exercer a minha profissão. Alguns desses já estão velhos, e outros serão um dia. E ainda os vejo por lá...
Tenho memória fresca para não me esquecer das suas palavras e actos.
Como é que vamos exterminar a maldade de quem despeja velhos para a morte, de quem lucra e lhes suga o pouco sangue que lhes corre nas veias, e dizer a esses que foram jovens ontem ,obrigado pelo que fizeram pelas nossas famílias, pela sociedade e pelo país?
Que sorte tenho eu só de saber que um dia irei partir com a família a aconchegar-me , no frio que precede o adeus.
Justiça urgente para os velhos deste país.
Júlio Isidro