“... e eis que há entre nós pessoas que, em seu nome (Karl Marx), procuram diminuir a importância da teoria! Sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário.”
- Vladmir Lenine (1902), In Que fazer?
Por Josué Bila*
A recente exumação do já slogan "Povo no Poder" de que se atribui ao primeiro Presidente de Moçambique, Samora Machel, e reverberado, nos dias que correm, a partir do rapper Azagaia, desperta várias curiosidades. A dimensão interpretativa da História política é dessas curiosidades. Em nenhum momento Samora Machel colocou ou colocaria "o povo no Poder", em virtude das circunstâncias político-ideológicas da época, por serem desfavoráveis à ideologia da igualdade de direitos e a República constitucional. Uma das cláusulas pétreas para que o "povo" esteja no Poder, é a inexistência do partido único a determinar tudo e a todos, em contraposição às democracias liberais ou ao Estado de Direito, onde os bestalhões de Poder são proibidos a cometer arbitrariedades e a impor o seu rancor pessoal e estatal contra os titulares da dignidade humana e dos direitos e liberdades fundamentais: os cidadãos. O cerceamento do direito de ir e vir, o direito de escolher os representantes e ser escolhido dentro das condições da democracia liberal, por exemplo, são dos exemplos de que uma interpretação do "povo no Poder", para os novos tempos requeria essas lembranças tanto arbitrárias quanto totalitárias. Como o povo estaria no Poder, se o seu direito à vida era negociado nas orgias marxistas-leninistas de que o “autor” do afamado slogan "povo no Poder" era parte dos mandantes morais?
Causa estranheza, quando jovens sem reflexão política aprofundada são jogados a repetir expressões que lembram umas das ondas políticas mais sombrias do País, na subsequência da Independência Nacional. Por qual razão isso acontece? Porque nós, o "povo", já encarnamos que, quem pensa diferente fora das "panelinhas" dos famosos das organizações não-governamentais, dos ativistas sociais, dos partidos políticos e do Facebook, está vinculado aos bestalhões do Poder e às suas secretas. Esta caricatura divide, certamente, o "povo" em partes do que junta as partes do povo em uma ideologia minimamente consensual em torno do já previsto na Constituição e talvez num documento de que o "povo", ávido de Poder, não tem memória, a Agenda 2025.
Parte da roda ideológica já está inventada, mas o "povo" anda disperso em cancelamentos. A corrente de indução maciça a cancelamentos faz parte das práticas ideológicas espalhafatosas do que de indução maciça, em democracia intelectual, a propostas, tais como: “um jovem, um livro”. Talvez valha a pena lembrar a lição magistral do escritor brasileiro Monteiro Lobato: “um País se faz com homens e livros.” Livros nas mãos de jovens salvará Moçambique do que a extensão da cidadania rancorosa, induzindo o “povo” a cancelar aqueles cantores e músicos, vítimas da mesma pobreza ideológica e teórica de que enferma aos organizadores dos cancelamentos.
Em momentos como este, teria sido mais oportuno se o "povo" avisasse o "povo" a investir energias a ler aqueles dois documentos (Constituição da República e Agenda 2025). Se todo o movimento contra os bestalhões do Poder, tivesse preparado e distribuído a Constituição da República e a Agenda 2025, por exemplo, teria preparado o “povo” a alguma retórica conjunta popularizada, para o futuro próximo. O “povo” deveria zangar munido de documentos, que reflitam ideologias e modelos sofisticados – e a Constituição reflete alguma sofisticação ideológica, política e jurídica cosmopolita, sem esquecer que as cláusulas constitucionais contemporâneas fazem parte duma longa história teórico-intelectual e ideológica do e para o respeito à dignidade humana. Não duvido que o "povo" sairia com posicionamentos ideológicos que merecessem respeito dos bestalhões do Poder. Os bestalhões do Poder, através dos seus "estudos securitários" já entendeu que, enquanto o "povo" não ler e, pior, ser liderado por “interesses episódicos”, manter-se-ão no Poder por tempo considerável.
Causa estranheza, ainda, quando o substantivo "Povo" tem muita força política do que o conceito cidadão ou cidadãos, pois estes, num ponto de vista da ideologia da igualdade de direitos, estão mais vinculados ao compromisso constitucional e às práticas republicanas contemporâneas.
A corrente de cancelamento que está em curso, visando apenas cantores e músicos, num País em que temos incontáveis figuras que trabalham, em nome dos direitos humanos e da justiça social, como infiltrados dos bestalhões do Poder, revela claramente que praticar a injustiça é o ponto estrutural das nossas relações sociais e políticas - não são apenas os bestalhões do Poder que são injustos. É o "povo" que também se alimenta do fel da injustiça. Ou seja, a manifestação contra os bestalhões do Poder está à caça dos bodes expiatórios, deixando de fazer uma lista completa dos agentes intelectuais, cujos trabalhos dúbios são semelhantes aos dos antigos régulos na administração colonial. Há incontáveis ativistas sociais que são fazedores dos inventários da tortura e da morte. Quando insisto que a nossa cidadania rancorosa se limita na sua capacidade de produção de dizeres panfletários e de fúrias ocasionais, sem uma institucionalidade teórica e ideológica clara, seguida de uma agenda sistemática sobre o diagnóstico dos problemas, debate e documentação dos modelos políticos e econômicos, parece-me acertado. As nossas redes sociais são uma vergonha existencial.
Em 2015, chamei à atenção a um dos representantes dos resquícios da assimilação portuguesa, Venâncio Mondlane, sobre as denúncias de corrupção, praticada pelos bestalhões do Poder. As denúncias sobre a corrupção, para que sejam didáticas, precisam da compreensão da História da corrupção em Moçambique e as condições sociais e políticas que produziram o alto grau de passividade e impunidade a quem desrespeita as regras republicanas ou regras mínimas de convivência em sociedade. Proponho, como hipótese, desde 2014, que a corrupção em Moçambique não será combatida sem que se entenda as suas "raízes no povo" e, mais recentemente, nem as violações dos direitos humanos serão entendidas, caso não se compreendam a ideologia das hierarquias e de busca incessante e generalizada por privilégios. A proteção e a implementação dos direitos humanos pressupõe o pêndulo da igualdade de direitos. Minhas pesquisas, naquilo que eu chamo de antropologia da República, indicam que a (ideologia da) igualdade de direitos não é o ponto nevrálgico das nossas relações sociais, mas, sim, as hierarquias e os privilégios, como centros mobilizadores das nossas relações e instituições.
Desta maneira, faço umas perguntas das minhas pesquisas antropológico-republicanas: Por qual razão e como os chefes comunitários, os pastores e os nossos pais são servidos as melhores iguarias do que o conjunto do “povo” comunitário, eclesiástico e familiar (no sul de Moçambique, observei cenários indicativos a isso. Não sei como essas relações estomacais se dinamizam nas regiões centro e norte, respectivamente)? Estes comportamentos têm relação com os encontrados nas instituições do Poder Público? Por qual razão e como os bestalhões do Poder abocanham a maior parte do bolo dos nossos recursos e deixam umas migalhas para o “povo”? Estas e outras perguntas precisam de ser respondidas e debatidas, para que o movimento do “povo no Poder” não caia nas estatísticas do nado-morto.
Embora não seja nem Leninista e nem Marxista, dá para retomar e terminar o texto com aquela expressão de Vladmir Lenine: “Sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário”. Talvez seja por isso que há mais espaços de cidadania rancorosa do que de cidadania republicana, em Moçambique.
* Em memória de Npamleni Bila e Joana Simeão.