(FORTALEZA, PORTA DE ENTRADA DA CAPELA
A fortaleza de São Sebastião, ao lado da qual
está a capela de Nossa Senhora do Baluarte, levou 62 anos a ser construída, entre 1558 e 1620. Suportou um ataque holandês em
1607. Hoje é “a maior fortaleza da costa este de África”. O acesso à capela é feito atravessando-a e ao seu largo pátio, de uma ponta à outra, desde a entrada principal até ao portão do baluarte nordeste)
Reabilitação
A capela mais antiga do Índico, na Ilha de Moçambique, foi construída por portugueses a caminho da Índia. Vai ser requalificada com um intrincado projeto cheio de desafios técnicos e peculiaridades. À noite passará a haver iluminação esculpida à medida do misticismo que envolve o local e que inspirou o arquiteto
Textos Luís Fonseca em Moçambique
O projeto de reabilitação da capela de Nossa Senhora do Baluarte bebeu do misticismo e espanto que a edificação histórica provoca a quem a visita, explica o arquiteto autor do trabalho. “Durante os dias em que estive na capela, pude ver visitantes que se prostravam, que se ajoelhavam, faziam orações, mesmo alguns que não eram religiosos admiravam a imponência do local”, conta Muhammad Cássimo. Era como se todos “sentissem o peso” da História.
Numa noite estrelada de luar, pensou que “com uma luz discreta, amarela”, a capela ganharia um entorno à altura das reações dos visitantes, num ambiente que passaria a estar acessível para visitas noturnas. A tecnologia LED permite “esculpir” a luz e foi incluída no projeto para tornar visível a áurea mística do espaço.
A capela ostenta características raras, capazes de deixar de boca aberta quem a visita. O guia Momade Raisse conhece-as a todas. “É, provavelmente, o mais antigo edifício preservado de Moçambique.
Acredita-se ser o primeiro edifício em alvenaria de pedra da África austral.” Ou seja, é o mais antigo edifício europeu até hoje de pé nestas paragens, encavalitado num banco de coral, mesmo em cima do mar. Raisse recorda que numa das marés vivas de 2021 as ondas mais altas passavam por cima da capela.
Foi construída entre 1522 e 1526 pelo capitão D. Pedro de Castro, antes de ser erigida a fortaleza de São Sebastião, que mais parece um gigante ao seu lado. Primeiro, nasceu a capela, no extremo da ilha, num baluarte raso e artilhado que era estratégico para “vigiar” a entrada na baía de Mossuril, que dá acesso aos cais.
A capela resistiu a ataques contra a armada portuguesa, venceu ciclones, mas agora tem a base esventrada por 500 anos de marés e tem o esqueleto corroído pelo salitre, impregnado pelo vento.
Os Governos de Portugal e Moçambique e a construtora Mota-Engil assinaram, em fevereiro, um memorando de entendimento para a reabilitação, que deverá arrancar em maio. O arquiteto explica que “entre os maiores problemas estão as falhas no baseamento”, cuja muralha “foi descomposta”, deixando a sustentação ameaçada por “buracos que chegam a três metros” de profundidade. E as ondas continuam a escavar. Entram, tiram os aterros e as pedras ficam sem suporte. No limite, se nada se fizesse, parte da capela podia ruir nas ondas.
O túmulo do primeiro bispo do Japão
O restauro da base mostra como o trabalho vai ter peculiaridades: só vai ser possível trabalhar com a maré baixa e com cuidados acrescidos face à superfície irregular, frágil, mas também pontiaguda dos restos de coral. Além disso, na capela, “há elementos arquitetónicos que se podiam até chamar arqueológicos” — como é o caso de um túmulo emparedado que foi vandalizado — e cuja recuperação requer a presença de especialistas moçambicanos e portugueses em artefactos.
“Aqui há 12 túmulos, todos de pessoas importantes”, explica Raisse, o guia da fortaleza de São Sebastião e da capela de Nossa Senhora do Baluarte. Aponta para alguns e vai recitando as descrições com que recebe os visitantes. “Aqui está um bispo sepultado em 1588”, o jesuíta D. Sebastião de Morais, primeiro bispo do Japão. Um sinal de como as culturas de vários pontos do mundo de então se cruzavam na ilha, conferindo-lhe um ambiente cosmopolita que hoje se reflete no seu património histórico.
Outro túmulo, de 1516, é o de Fernão Martins Freire de Andrade, o mais antigo capitão de Sofala e Moçambique. Ao lado está um “governador-geral do século XIX” e depois há outro túmulo “que já não conseguimos distinguir, porque a escrita desapareceu há muito tempo”.
Todos os dias, das 8h30 às 16h30, é possível apreciar a capela, mas é aos fins de semana que as visitas costumam aparecer. Raisse não sabe quando foi ali celebrada missa pela última vez, mas o misticismo persiste e já houve visitantes a deixar dinheiro na pedra do altar, como num ofertório, apesar de o interior estar totalmente despido, em pedra nua, corroída e manchada pela humidade.
Ao sair, o guia vê com cuidado onde põe os pés, na zona do “nártex”, ou seja, uma espécie de alpendre largo cuja cobertura ruiu faz tempo, à entrada da capela, no mesmo sítio onde permanece o resto de um púlpito e de uma parede, cuja pedra parece ter sido trazida de Portugal.
“Todas as decisões no projeto de recuperação foram pensadas para dar maior durabilidade” à capela, explica Cássimo, que espera que as “gerações vindouras” reforcem os cuidados de manutenção de um património histórico valioso e com forte potencial de atração turística. “Estamos a introduzir algumas técnicas, porque não sabemos se vamos ter outra oportunidade destas” para fazer trabalhos de recuperação.
Por exemplo, a argamassa do reboco vai ser preparada para durar mais tempo e estão previstos tampos móveis que poderão ser colocados durante marés vivas para evitar a entrada da água. Os ciclones que sempre fizeram parte da costa moçambicana estão “mais frequentes”, e o projeto reforça essa resistência às intempéries.
O arquiteto e a capela: velhos conhecidos Muhammad Cássimo, de 38 anos, é natural da Ilha de Moçambique e só saiu da província até Maputo para se formar em arquitetura, uma via escolhida porque desde miúdo brincava entre ruínas de edifícios na ilha que foi declarada Património Mundial da Humanidade pela UNESCO em 1991.
A fortaleza e a capela são só dois dos vários edifícios classificados. “A minha meta: quanto mais casas reabilitar, melhor. Quando acabei o curso, voltei”, conta. Já ali passou muitas horas, conhecendo cada fissura que viu crescer até se tornarem fendas bem visíveis.
“Já fiz viagens noturnas” e os navegadores de dhow — embarcação à vela da região — dizem que a capela iluminada “vai facilitar-lhes a vida”, sobretudo em dias de mar agitado ou quando não há energia que alimente outras luzes. A requalificação vai reavivar a função da capela de vigia e sinalização no acesso ao mar alto que há 500 anos fez com que a construíssem no extremo norte da ilha que haveria de ser a primeira capital de Moçambique, a surfar sobre pedra coralina, à espreita da rota da Índia.
EXPRESSO(Lisboa) – 06.04.2023