Por Elísio Macamo
Ninguém em pleno gozo das suas faculdades mentais pode minimizar o papel do colonialismo nos problemas que o continente africano enfrenta. O colonialismo vivido em África representa o que há de pior na capacidade humana de se aproveitar do outro e fazê-lo sofrer. Nada do que ele possa ter dado de bem aos africanos pode compensar a humilhação sofrida. Felizmente, é possível, e cada vez mais, falar sobre isto com os europeus. Existem, claro, sectores que ainda se fecham a este tipo de conversa, preferindo destacar o que pensam ter sido o lado positivo da colonização.
O que torna a conversa possível – com aqueles que estão interessados – é a referência a um discurso ético de responsabilidade. Ele assenta no reconhecimento da medida em que o colonialismo, como ele foi praticado em África, constituiu uma violação dos valores humanos cujos direitos de autor os europeus reclamaram para si. Nos vários debates em que tenho participado aqui nas Europas tenho insistido sobre esse ponto. Recuso-me, por uma questão de princípio, a fazer exigências do tipo “pedido de desculpas pelo colonialismo ou pelo comércio de escravos”. Isso não é porque não considere esse gesto importante. É porque não é aos africanos a quem os europeus têm de pedir desculpas, mas sim aos seus próprios valores. Essa é a condição para que eles estejam prontos para dialogar com as pessoas a quem fizeram mal de igual para igual.
Acho que eles vão chegar lá. A questão, contudo, é que não sei se quando eles lá chegarem, nós os africanos estaremos prontos para essa conversa. O meu receio funda-se numa suspeita. Ao contrário deles, nós não temos um discurso ético de responsabilidade. O que temos é um discurso ético de victimização – compreensível nas circunstâncias – que promove entre nós uma moral cruel. Essa moral assenta na ideia de que o mal tem um nome específico, a saber o europeu (ou branco). O mal não faz parte da constituição do ser humano, mas sim é propriedade exclusiva dum grupo humano específico. Ao fazermos isso, infelizmente, ficamos automaticamente cegos ao mal que pode partir de nós não só contra o “verdadeiro portador do mal” como também contra outros que são iguais a nós.
Há elementos da moral cristã nisto. O sofrimento às mãos dos romanos e a ideia de “traição” atribuída aos judeus encorajou o Cristianismo também a externalizar o mal. O anti-semitismo que levou ao Holocausto é tão manifestação dessa moral quanto os horrores da Inquisição, da caça às bruxas como também da defesa, por alguns sectores, do colonialismo também são. Ninguém é mais perigoso do que aquele que colhe do mal que lhe foi infligido a convicção de que ele é moralmente superior e, não só, que dele nenhum mal pode partir. Essa pessoa torna-se moralmente cruel.
Há uma tendência entre nós africanos para sermos moralmente cruéis. Ela vem da redução do mal ao colonialismo. Politicamente, ficamos impenetráveis ao que podemos aprender de quem nos colonizou e vamos ao extremo de aplaudir tudo que é contra ele, mesmo que fira valores que, em princípio, orientaram a nossa própria luta pelo reconhecimento. Só que este é justamente o problema. Não me parece que haja forte consciência desses valores também porque a nossa abordagem do passado não é suficientemente profunda. O problema começa no exagero histórico em relação à duração do colonialismo – que praticamente em todos os casos foi de menos de 80 anos. A extensão temporal é problemática porque integra dentro do “colonialismo” muita coisa que nós próprios protagonizamos e que deveriam ser reflectidas, mas são convenientemente escondidas.
Um exemplo. Nas últimas semanas tem havido uma discussão feia na Alemanha (e na Suíça) – na qual também participo – sobre a restituição dos Bronzes do Benin. O que a provocou foi um artigo duma antropóloga alemã que revelou uma decisão do Presidente cessante da Nigéria para passar a propriedade dos Bronzes que as autoridades alemãs devolveram à Nigéria ao Rei do Benin (legalmente, na verdade, seu proprietário legítimo). A antropóloga argumentou que um bem público estava a ser entregue a uma pessoa privada e que esse era o futuro deste movimento de restituição (um exagero, naturalmente, mas pelo menos melhor do que o que se dizia antes, nomeadamente que tudo ia terminar no mercado negro ou ninguém ia cuidar).
Pior ainda, ela recuou ao passado para dizer que o Estado de Benin não só praticava o comércio de escravos em larga escala como também praticava a morte ritual de escravos. Quando os britânicos destruíram esse Estado em 1897 numa expedição militar, houve relatos de que o Rei teria mandado chacinar muitos escravos como forma de apaziguar os espíritos para irem em sua defesa. Os relatos da época – feitos por britânicos – dão destaque aos rios formados pelo sangue jorrado pelos escravos. Parte da justificação para a expedição foi também acabar com o comércio de escravos.
Compete aos historiadores avaliar com mais cuidado o que realmente aconteceu. Há muitos livros sobre isto e a maioria confirma o envolvimento do Estado do Benin nestas práticas. Não é diferente do que se viu noutros pontos de África. Isto inclui o nosso próprio País com o Império de Gaza que foi tudo menos benevolente, razão pela qual os portugueses tiveram o apoio de algumas populações e chefes locais.
O que quero dizer é o seguinte: A África pré-colonial não é o idílio que alguns pintam, o que não é surpreendente, pois em nenhuma parte do mundo houve esse idílio. Mas é importante dizer isso para chamar atenção à necessidade de não partir do princípio de que sem o colonialismo a África teria estado bem. O estado em que a África se encontrava nessa altura faz parte das razões que levaram ao colonialismo. Não só isso, mas também que a insistência no mal colonial impede-nos de fazer uma reflexão séria e útil para hoje.
E aqui levanta-se um problema filosófico fundamental. Apesar de muitos andarem a glorificar uma suposta cultura africana, nenhuma das reflexões que se fazem nesse quadro se inspira num discurso moral de responsabilidade genuinamente africano. E isso não é de estranhar. Ele não existe. Não é porque os africanos sejam incapazes. É porque o sentido de superioridade moral que encontramos na nossa condição de vítimas do colonialismo protege-nos do trabalho que isso dá. Mas não foi sempre assim. Kwame Nkrumah, com o seu conscientismo, tentou. Nyerere, Sekou Touré, Senghor, etc. também tentaram. Faltou, talvez, nessas tentativas a preocupação de colocar o africano no centro duma nova ética. Hoje, essa estirpe de líderes não existe. Faltam-nos elites políticas e intelectuais com coragem para não reduzirem o mal apenas aos que nos fizeram mal, mas considerar a forte possibilidade de que nós próprios possamos praticar o mal por nos sentimos moralmente superiores.
Não preciso de descrever as atrocidades cometidas em Moçambique após a independência em resultado desse tipo de convicção. Não preciso de documentar a aparente indiferença ao sofrimento de milhões e milhões de moçambicanos por parte de gente que vive muito bem demais à custa do Estado, ou das oportunidades que ele cria apenas para alguns. O exemplo mais revoltante desta indiferença foi a recente atitude dos nossos parlamentares em relação à necessidade de redução do seu salário e de demais servidores públicos, pessoas que “representam” milhões de moçambicanos que não têm onde cair de mortos, mas não têm nenhum problema em exigir salários avultados que nem são garantidos pela riqueza que o País produz, mas sim pelo auxílio externo. Já nem falo da forma fria e indiferente como algumas pessoas reagem à barbárie russa na Ucrânia só porque este País é defendido por aqueles que no passado nos fizeram mal.
Não consigo entender uma pessoa que se comove com o mal infligido ao líbio, mas não com o mal infligido ao ucraniano. A nossa reacção ao mal devia ser incondicional, é isso que faz de nós humanos. Aprender da história é isso.
Tenho para mim que a pior consequência do colonialismo é esta moral cruel. O colonialismo não nos atrasou economicamente, apenas. Atrofiou-nos mentalmente ao ponto de estarmos essencialmente perplexos. Ainda hoje conversava com alguém dum País africano que está envolvido num processo de produção duma nova constituição na sequência duma ruptura institucional violenta. Perguntava-me o que essa constituição deve conter. Disse-lhe que o desafio não é o conteúdo. O desafio é duplo e situa-se ao nível, primeiro, de saber para que problema a nova constituição vai ser uma solução e, segundo, que condições devem ser criadas para que ela seja respeitada.
Nos Países onde a tradição realmente funciona – caso, por exemplo, da Grã-Bretanha – é impressionante o respeito que os britânicos têm pela Monarquia. Na verdade, o respeito nem é pela Monarquia. É por aquilo que ela representa para a estabilidade do sistema político. Todos sabem que quem manda é o Primeiro Ministro por via do Parlamento. Mas todos fazem de conta que é a Monarquia. Nós transformamos a constituição num expediente para acomodar aquilo que convém a quem exerce o poder porque, já nem preciso de dizer isto, ele sabe melhor, não faz mal a ninguém – senão a quem merece – e não é colono.
O falecido filósofo camaronês, Eboussi-Boulaga, costumava dizer que se a África quiser mesmo sobreviver vai ter que filosofar de verdade. Quanta razão tinha ele, mas lá está, quem vai fazer isso? Que espaço haverá para quem possa fazer isso? Nada é mais ridículo do que ver um presidente africano – como Museveni recentemente – a apelar à resistência à imposição de valores ocidentais e à proteção da cultura africana que ele livremente interpreta como a permissão para que o Estado ugandês seja cruel contra ugandeses com uma orientação sexual diferente. Para essas pessoas a liberdade de expressão, o direito à diferença, e a proteção contra a violação da sua integridade física não se aplicam.
Em nome da cultura africana, claro, a mesma que não nos protegeu do colonialismo, aliás, a mesma que provavelmente tornou o colonialismo possível.