Num momento em que se torna cada vez mais evidente e assustador o poder e a influência que a TotalEnergies tem no nosso país – a ponto de interferir nas decisões que deveríamos tomar de forma soberana, ligadas à segurança e defesa do Estado – pouco nos surpreendeu a notícia que o consórcio da EDF, TotalEnergies, Sumitomo Corporation e Kansai havia sido seleccionado como parceiro estratégico para o projecto da megabarragem de Mphanda Nkuwa.
Embora expectável, esta notícia deveria nos preocupar e indignar. Afinal, este consórcio que o Gabinete de Implementação do Projecto Hidroeléctrico de Mphanda Nkuwa (GMNK) nos apresenta como robusto e experiente, é composto por uma série de empresas transnacionais cuja conduta em termos do respeito aos Direitos Humanos e preservação do meio ambiente é altamente reprovável, e isto deveria servir de alerta vermelho.
Quem é quem no consórcio Franco-Japonês
A maior companhia de energia da França, a EDF, cujo sócio maioritário é o Estado Francês, além de deter uma série de projectos de energia nuclear, esteve à frente de um projecto de construção de parques eólicos na região de Oaxaca, no México. A EDF e seus parceiros locais violaram o estabelecido pela lei Mexicana, que exige que qualquer decisão relativa ao uso da terra naquela região ocupada por povos indígenas deve ser tomada por meio de uma assembleia comunitária. Muito pelo contrário: contratos avultados foram celebrados e concluídos entre a empresa Eólica de Oaxaca (subsidiária da EDF) com indivíduos da comunidade, que agiram como se fossem proprietários privados da terra. Contratos de fornecimento de energia e um memorando de entendimento com o governo do Estado de Oaxaca para a construção do parque eólico de Gunaa Sicarú foram celebrados sem qualquer consulta prévia e adequada com os membros da comunidade local de Unión Hidalgo. Quando a comunidade começou a contestar a legalidade do projecto do parque eólico utilizando procedimentos legais domésticos, argumentando com base no seu direito ao consentimento livre, prévio e informado, começaram a sofrer crescentes ataques e foram alvo de violência e ameaças devido à sua oposição ao projecto da EDF. Após 5 longos anos de luta em defesa dos seus direitos à terra, ao território e aos recursos naturais, por parte da comunidade Zapotec de Unión Hidalgo, em conjunto com a organização Mexicana ProDESC, a Comisión Federal de Electricidad do México cancelou definitivamente os contratos com a EDF.
Sobre a Total, agora renomeada TotalEnergies, infelizmente os casos em que esta transnacional Francesa está envolvida em violações de Direitos Humanos e na destruição do ambiente abundam. Os inúmeros casos legais existentes actualmente contra a companhia elucidam este cenário. Os casos vão desde permitir que a sua central de gás seja usada como uma prisão no Iémen, onde decorrem graves violações de Direitos Humanos e há acusações de tortura; até impactar mais de 100.000 pessoas com o seu projecto EACOP no Uganda, com depoimentos de inúmeros casos de intimidações e repressão associados ao projecto, perda de meios de subsistência e incumprimento das suas obrigações de compensação às famílias Ugandesas que perderam as suas terras. Os impactos da TotalEnergies em Cabo Delgado já são melhor conhecidos no nosso país, e a Justiça Ambiental e outros pesquisadores e organizações têm vindo a publicar inúmeros relatórios sobre o assunto, seja a respeito da sua criminosa contribuição para a crise climática, as violações dos Direitos Humanos das comunidades locais, a destruição dos ecossistemas e meio ambiente e as suas ligações com a violenta insurgência. Quando estas flagrantes violações são denunciadas, a TotalEnergies foge às suas responsabilidades, ora afirmando que os problemas relacionados com o processo de reassentamento são de responsabilidade da empresa anterior Anadarko, ora utilizando-se de especialistas internacionais para remeter a responsabilidade pelo conflito em Cabo Delgado inteiramente ao governo de Moçambique.
As empresas Japonesas – Sumitomo Corporation e Kansai – também tem uma imagem bastante manchada, principalmente em questões ambientais e laborais. A Sumitomo Corporation, em particular, é acusada de “repetidas violações de Direitos Humanos” e de violar as suas próprias políticas internas no seu escritório em Miami. O sindicato de trabalhadores acusa a empresa de ameaças, retaliações e outras formas de intimidação a vários dos seus membros a respeito dos seus esforços de organização sindical.
Algo que todas estas empresas têm em comum? O seu comportamento destrutivo e inconsequente perante o planeta, o clima e as pessoas directamente afectadas pelas suas actividades, e o seu compromisso com o lucro a qualquer custo.
O sinuoso caminho que já conhecemos
A proposta barragem de Mphanda Nkuwa, no Rio Zambeze, é talvez o projecto de mega-barragem mais controverso do continente Africano, e certamente aquele que enfrenta resistência local, nacional e internacional há mais tempo. Já são mais de 22 anos em que organizações da sociedade civil, especialistas, cientistas e académicos, têm alertado o governo a respeito dos riscos deste projecto e seus prováveis impactos, e inúmeros estudos denunciam os impactos já provocados antes mesmo da primeira pedra ter sido lançada. Com alguma maquilhagem nos anos recentes, o projecto continua a permanecer em silêncio a respeito de questões fundamentais que já foram colocadas pela Justiça Ambiental e vários outros actores, como por exemplo:
- Por que razão se tem excluído as populações locais do processo de tomada de decisão a respeito deste projecto, e estas só começam a ser visitadas 4 anos depois da criação do GMNK?
- Onde e em que condições se pretende reassentar as populações locais, tendo em conta os graves níveis de conflito de terra já existentes no Distrito de Marara?
- Por que razão não são partilhados os Termos de Referência dos estudos que estão a ser desenvolvidos, e por que razão o GMNK evade-se do devido escrutínio público, ao mesmo tempo em que afirma seguir as melhores práticas e procedimentos internacionais?
- Que outras alternativas energéticas de menor impacto foram equacionadas, e por que razão não é feito um debate público a este respeito?
- Por que razão os membros das comunidades locais, líderes tradicionais, e organizações da sociedade civil que levantam questões a respeito deste projecto têm sido intimidados, reprimidos e até chamados de terroristas?
O que esperamos então de um projecto já com claras indicações de ser ambientalmente destrutivo, socialmente injusto e exacerbador de tensões sociais, quando este é posto nas mãos de empresas transnacionais de poder económico superior ao do nosso Estado, e que insistentemente fogem da responsabilidade sempre que as suas actividades contribuem para a violação de Direitos Humanos e a destruição do meio ambiente?
E porque não nos podemos dar ao luxo de mais megaprojectos falhados no nosso país, a Justiça Ambiental permanece comprometida em travar este projecto até que estas e outras questões sejam devidamente respondidas, em contribuir para a elaboração de estudos e análises que iluminem o lado obscuro deste projecto, e em trabalhar com comunidades locais e parceiros nacionais e internacionais para que seja salvaguardado o direito dos povos à auto-determinação e ao desenvolvimento sustentável e inclusivo. Até que estejam devida e adequadamente comprovados os benefícios deste megaprojecto para o povo e para Moçambique, reiteramos: Mphanda Nkuwa NÃO.
SAVANA – 09.06.2023