Um plebiscito ao poder do Presidente
O líder do Movimento para Alternância Democrática (Madem-G15), Braima Camará, em campanha para as legislativas de 4 de junho <span class="creditofoto">FOTO ANDRE KOSTERS/LUSA</span>
O líder do Movimento para Alternância Democrática (Madem-G15), Braima Camará, em campanha para as legislativas de 4 de junho
Nas eleições legislativas de domingo, os guineenses vão escolher os novos deputados e um novo Governo, mas está sobretudo em jogo um medir de forças entre o Presidente, Umaro Sissoco Embaló, e os seus adversários políticos, já a pensar nas presidenciais de 2025.
O chefe de Estado tem aparecido na campanha, quer nos cartazes ao lado de Braima Camará, líder do partido que ajudou a fundar e que está no poder — Movimento para Alternância Democrática (Madem-G15) —, quer nas inaugurações que fez, desde um porto de pesca às obras de ampliação do aeroporto.
O jurista Seco Duarte Nhaga olha para domingo e considera que uma derrota do bloco dos partidos que sustentam o Executivo “é um forte sinal ao Presidente da República de que será o próximo alvo a abater pelo povo”. Como o atual Governo foi feito “à imagem do Presidente da República” e sem base parlamentar, Sissoco “não terá mais força política para assegurar um projeto de segundo mandato” em 2025, diz.
Olhando além da propaganda diária, o analista político guineense Rui Jorge Semedo explica que as eleições são um “tipo de referendo” crucial para o Presidente afirmar o seu poder, que pode precisar de uma maioria de dois terços “para poder controlar praticamente todas as estruturas de governação” de um país em que o semipresidencialismo constitucional tem sofrido abalos graças às sucessivas intervenções dos chefes de Estado.
Nas ruas da capital e nas tabancas espalhadas pelo país o resultado eleitoral pode não corresponder a esta análise, porque é mais relevante a persistente crise económica, acentuada pelos maus resultados da campanha do caju num país com poucos quadros qualificados.
Seco Duarte Nhaga foi presidente da Rede Nacional das Associações Juvenis (Renaj) e aponta a falta de formação como principal obstáculo ao desenvolvimento, que impede uma “revolução social” num país onde 64% da população é jovem. O risco está afastado, refere, porque uma ação deste tipo exige dos jovens “um certo nível de conhecimento, de consciência”, para terem “capacidade de fazer uma análise política do ambiente em que vivem”.
UMA CRISE ANUNCIADA
Em plena campanha eleitoral, Sissoco voltou a colocar as cartas na mesa ao reiterar perante representantes da comunidade internacional que não vai nomear como primeiro-ministro o presidente do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), Domingos Simões Pereira, que lidera a coligação Plataforma Aliança Inclusiva (PAI-Terra Ranka), mesmo que vença as eleições. Os dois disputaram a segunda volta das últimas presidenciais, em 2019, e Sissoco tem insistido que quer um segundo mandato.
Caso nem PAI nem Madem-G15 tenham maioria absoluta, o Partido de Renovação Social (PRS), terceira maior força política — integra o atual Governo de iniciativa presidencial — poderá ser o “fiel da balança”.
Na Casa dos Direitos, no centro de Bissau, Bubacar Turé, vice-presidente da Liga Guineense dos Direitos Humanos, considera que a forma como o Presidente “encarna o poder”, sobretudo as dificuldades em “aceitar o princípio de separação de poderes”, vai gerar “graves problemas depois das eleições”. “É verdade que a Guiné teve dificuldades visíveis em engrenar pelos trilhos da democracia, mas agora essa dificuldade ficou ainda mais evidente” com comportamentos muito comuns em democracias frágeis, “de negociatas”, numa clara “perda de dignidade por parte da classe política”, alerta Rui Jorge Semedo.
Há dificuldade em escoar castanha de caju, de que dependem 80% dos dois milhões de guineenses
Álvaro de Nóbrega, professor do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), também antecipa um cenário de crise: “Alguém que não seja do agrado do Presidente tem pouco tempo no poder, ou não é nomeado ou, se for nomeado, rapidamente é exonerado.” O analista português lembra uma expressão do falecido ex-Presidente Kumba Ialá (2000-2003) para explicar parte do problema da governação do país: “Não pode haver dois donos da mesma terra e, portanto, uma terra tem um dono, há um chefe e o chefe manda.” Isto justifica a dificuldade histórica dos Presidentes da Guiné-Bissau em aceitar a separação de poderes, com a troca constante das figuras de primeiro-ministro. Apesar disso, considera, a mudança de regime “não resolveria toda a luta de poder” na Guiné-Bissau.
Sissoco Embaló já deixou claro que este é o seu propósito, em 2020, numa entrevista ao Expresso: “Chefe é chefe, eu decido, eles obedecem.” É por isso que Rui Jorge Semedo considera que, com a chegada ao poder do atual chefe de Estado, “o país passou a viver, de facto, num regime presidencialista”. Se a Constituição for alterada, o analista guineense não tem dúvidas de que há risco de “totalitarismo”. “Do ponto de vista do exercício do poder por parte da Presidência, há um protagonismo excessivo que não se conforma com o papel moderador e arbitral que deve ter um Presidente num sistema semipresidencialista”, reforça.
ELEITORES PREOCUPADOS COM FOME, E NÃO COM POLÍTICA
Nas ruas, questões sobre o desempenho dos políticos ou sobre a campanha têm como resposta um encolher de ombros e receio de falar. Magda, vendedora de sumos de fruta no recém-inaugurado porto de pesca artesanal, junto ao Bairro do Bandim, na capital guineense, prefere comentar a crise que o país atravessa e que lhe afasta os clientes. Nos dias piores faz apenas entre 500 e 1000 francos CFA (€0,75 a €1,50), que têm de dar para sustentar os dois filhos, de quatro e sete anos. A jovem, de 24 anos, já viúva, lamenta não ter “a escola” para dar um futuro aos filhos.
A Guiné-Bissau é um país que vive apesar da instabilidade política e, nalguns casos, militar. O vice-presidente da Liga Guineense dos Direitos Humanos tenta dar uma explicação: o povo “foi educado para ser submisso, para não contestar ou para não escrutinar a atuação dos poderes políticos”. Esta cultura “dificulta atuações de jovens, e da sociedade em geral, contra o poder político, contra a desgovernação, a corrupção, a impunidade e todos os males”, defende Turé.
“OBRAS MEGALÓMANAS”
Além do risco de crise política, a situação económica da Guiné-Bissau pode agravar-se com as dificuldades de escoamento da produção de castanha de caju, atividade da qual dependem 80% dos dois milhões de guineenses. A Guiné-Bissau está entre os 10 países africanos mais frágeis, com cerca de 60% da população na pobreza, segundo a ONU.
Em Farim, centro-norte do país, junto à fronteira com o Senegal, Binta Sissé diz que já nem tem “onde pôr o pé” em casa, ocupada com o caju armazenado. “Não há quem compre o nosso caju. O preço está muito baixo. Há quem venda até a 75 francos CFA” o quilo, cerca de €0,10, quando o preço de referência estipulado pelo Governo é cinco vezes mais alto. A guineense tem mais de 20 bocas para alimentar e para isso tem de trocar dois sacos de caju de 50 quilos por um de arroz. Mesmo assim, “há fome”. “Se tomares o pequeno-almoço, já não consegues almoçar. E se almoçares, já não consegues jantar”, lastima Binta.
Este desalento leva o analista Rui Jorge Semedo a considerar que as “obras megalómanas” lançadas pelo Presidente, apesar de positivas, porque o país precisa delas, não lhe garantem “reconhecimento popular” e vão criar-lhe “enormes dificuldades” para renovar o mandato em 2025. Álvaro de Nóbrega resume que o caminho da Guiné-Bissau “não é uma linha reta, está cheio de dificuldades”.
A vendedora de sumos de Bissau concorda: “Aqui na Guiné é preciso batalhar muito para ganhar um pouco”, mas “tudo vai passar um dia”.
EXPRESSO(Lisboa) – 02.06.2023