É talvez sinal dos tempos que eu sinta alguma dificuldade em escrever este texto. Quero partilhar parte da minha viagem como académico. Ela consistiu, noto cada vez com maior clareza nos últimos tempos, na compreensão da grande diferença que existe entre ter uma opinião e ter conhecimento. Toda a gente pode ter opinião. Mas ter opinião e sentir dificuldades em a articular constitui o que a meu ver define quem tem conhecimento. Eu opino muito, evidentemente, mas também sei quantas vezes me contive por me ter dado conta de tudo quanto eu não entendia, mas precisava de entender, para poder emitir opinião.
A dificuldade em dizer isto vem do facto de que haverá sempre alguém, normalmente alguém com pouca, deficiente ou incompleta preparação académica, que vai achar, talvez até com alguma razão, que um professor universitário, portanto, alguém que deve saber do que fala, não devia dizer isso porque isso é sinal de arrogância (vai chegar o dia em que uma médica vai ter receio de diagnosticar para não contrariar a opinião de algum doente). E pode ser. Só que é também a realidade. Há pessoas que têm autoridade para falar sobre certas coisas. Há as que não têm essa autoridade, mas sim a obrigação de se interpelarem e procurarem saber porque alguém com autoridade pode estar assim tão equivocado – aos seus olhos – e elas assim tão certas. Essa é a transição que tive de fazer no meu percurso. Senti que me tornei académico no dia em que passei a dar mais importância ao que eu precisava de saber para entender alguma coisa do que a achar que tinha razão ou que estava do lado da verdade. Foi, e continua a ser, doloroso.
Nas redes sociais tenho visto, por exemplo, alguém a emitir uma opinião sobre algum assunto controverso e aparecerem pessoas que veem as suas próprias convicções confirmadas, pessoas que não dominam necessariamente o assunto, a pôr em causa a sanidade intelectual de alguém com uma opinião diferente. A frase de eleição tem sido “e os nossos doutores não entendem isso!”, isso dito por alguém que não é doutor. Ou gente a considerar “aula” a opinião de alguém que apenas confirma as suas convicções sem, aparentemente, terem feito o esforço de ouvir outras “aulas” de gente igualmente abalizada, mas com opinião diferente. Não quero com isto dizer que ninguém deva concordar com nada se não for abalizado numa determinada matéria. Uma coisa é se sentir persuadido por um determinado ponto de vista, outra é concluir que por essa razão esse ponto de vista deve necessariamente corresponder à verdade. As coisas são mais complicadas do que isso. Felizmente, digo de passagem.
A opinião é o ponto de partida para a construção do conhecimento. Não é o ponto de chegada, embora, curiosamente, o conhecimento permita depois formular uma opinião abalizada. Ser o ponto de partida significa apreciar tudo o que é preciso ter em conta para ganhar a coragem de pôr as mãos no fogo por essa opinião. E é aí onde as coisas se complicam. Como costumo explicar em aulas de metodologia, tudo releva de factos, isto é existe sempre uma base factual para sustentar alguma afirmação. Se eu digo “hoje chove” é porque existe uma base objectiva para descrever certos fenómenos como “chuva” e como “hoje”. Essa objectividade não significa necessariamente que o mundo seja realmente assim. Significa apenas a existência de critérios não-subjectivos na base dos quais podemos descrever esses fenómenos dessa maneira. A complexidade dos factos varia. A apreciação dessa variação costuma ser função do grau de especialização de quem os aborda. Infelizmente, “chuva” é um facto simples. “Átomo” já é coisa complexa e muitos de nós aceitamo-lo como facto apenas porque aceitamos a autoridade de outros, no caso, físicos.
Explico também, nessas aulas de metodologia, que factos só não fazem uma opinião. É preciso organizá-los, algo que fazemos com recurso a ideias. Um provérbio, por exemplo, é uma ideia. Em Xangan a gente diz “U nga teki xinyokana u veka khwapeni” (não ponha uma cobrinha no sovaco). Quer dizer: não protejas uma pessoa perigosa! Essa é uma grande ideia! Aquela expressão que diz que contra factos não há argumentos é, para mim, um grande equívoco. Não é contra factos que não há argumento. O que contam não são os factos, mas sim as ideias que os organizam. E aqui as coisas complicam-se ainda mais. É fácil assimilar factos. Já não é assim tão fácil assimilar ideias, a não ser que uma pessoa faça o mais simples que é optar pelo dogmatismo e não permitir que a sua mente seja fecundada pela diversidade de ideias. E este é outro passo que um académico acaba dando em algum momento da sua formação: apreciar a diversidade das ideias!
Mas há sempre um senão. Apreciar a diversidade de ideias é um processo de aprendizagem contínuo. Ideias têm uma história. A ideia de Marx segundo a qual a luta de classes seria o motor da história faz parte duma história intelectual ocidental sobre a relação entre espírito e matéria, corpo e alma, propósito e destino, etc. que é preciso entender para falar com segurança sobre a exploração do homem pelo homem, sobre o dever revolucionário, sobre o imperialismo e colonialismo, etc. Não é obrigatório, obviamente, estudar tudo isto. Só que a partir do momento que a pessoa se dá conta da complexidade que faz essa ideia ela devia ser mais comedida na emissão de opinião. É só isso que quero dizer. Na pior das hipóteses, devia respeitar quem aparenta ter consciência dessa complexidade.
E as coisas não terminam aí. Ideias, por sua vez, costumam ser elaborações práticas de valores. A “luta de classes”, por exemplo, evoca vários valores, nomeadamente os valores da justiça, da solidariedade, da acção colectiva, etc. Só por si esses valores não constituem ainda nenhuma justificação de acção, ou crença. Elas levantam, isso sim, problemas éticos. Outros diriam “dilemas éticos”. Por exemplo, até onde posso ir no meu compromisso com a luta de classes? Posso matar alguém, ou muita gente, em nome dessa ideia? Posso limitar a participação política de quem não concorda comigo em nome dessa ideia? Essa ideia se eleva como princípio supremo que me não permite, por exemplo, assumir uma posição de compromisso quando estou perante alguém que não atribui o mesmo valor a ela? Que carácter pessoal é que essa ideia exige de alguém que nela acredita? O que significa virtude nessas circunstâncias?
De novo: há gente que aborda assuntos com plena consciência destas questões todas. Isso não significa que as domine. Significa que tem consciência delas e, por isso, pode achar prudente não emitir opinião forte sobre algo que envolva essa ideia. Há muitos assuntos complexos que a nossa ignorância pensa serem simples: orientação sexual, agressão russa, Ocidente, colonialismo, racismo, corrupção, democracia, etc. Quanto mais livros leio sobre estes assuntos, mais conta me dou da minha ignorância. Isso não me paralisa, claro. Dá-me apenas que pensar, incluindo pensar se algumas pessoas que fazem intervenções públicas sobre estes assuntos têm consciência do que não sabem.
Estive recentemente no Huambo, no Instituto Superior Politécnico Sol Nascente, no âmbito do projecto “Academia Sol Nascente” acarinhado pelo David Boio, um dos sócios desse estabelecimento de ensino superior. No meio das instigantes discussões que tivemos com os seus docentes chegamos à conclusão de que ensinar não é apenas – se calhar nem é mesmo – transmitir conhecimento. Ensinar é um acto colaborativo de construção do conhecimento. É isso. Ensinar é levar os estudantes a fazerem a transição da opinião ao conhecimento, isto é a apreciarem a complexidade das ideias que organizam os factos que nos permitem tirar conclusões. É um grande desafio, mas também uma grande dádiva para quem consegue apreciar quão arriscado pode ser emitir opinião!
Parte do que estou a tentar reflectir aqui diz respeito directo à qualidade da política em África. Duvido que as decisões políticas tenham fundamento na consciência da diferença entre opinião e conhecimento. Mas esse é, por enquanto, outro assunto!
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