Ontem escrevi um texto a tentar fazer uma distinção entre opinião e conhecimento. Terminei dizendo que receava que os nossos decisores políticos em África (mas não só eles) não tivessem consciência da distinção. Hoje vou tentar demonstrar isso com referência à agressão russa à Ucrânia. Este é um assunto difícil porque muitos de nós nos relacionamos com ele de forma emocional, o que não é grave, mas com tendência para a polarização entre os “pró-ocidentais” e os “pró-Rússia”, o que é grave porque impede a deliberação.
Escrevi ontem que uma opinião é um ponto de partida. Quem diz, por exemplo, que a “Rússia invadiu a Ucrânia para proteger os seus interesses de segurança” compromete-se com questões factuais num primeiro momento. A principal diz respeito às causas. Existem especialistas nesta matéria que apresentam razões fortes que sustentam essa opinião. Infelizmente para quem não é especialista, existem também vários outros especialistas que contradizem essas razões. Aqui surge um desafio. Pode não ser prudente para quem não é especialista se agarrar a essa opinião, sobretudo se não tiver lido (ou ouvido) esses outros especialistas e, também, se não tiver as ferramentas intelectuais necessárias para entender a discussão.
Insistir nos motivos que tornam a pessoa favorável à posição russa – que podem ser ressentimento em relação à história colonial, gratidão pelo apoio na luta-anticolonial, rejeição da política imperialista do Ocidente nos dias de hoje ou mesmo o desejo de viver num mundo multi-polar – reforça apenas a opinião, não a submete a nenhuma avaliação crítica. Tenho tido a curiosa experiência de ver rostos atónitos de gente que repete este tipo de argumentos quando a confronto com outros que abalam o que pensa. Estou a pensar, por exemplo, no reparo que tenho feito de que não foi a Rússia que apoiou a nossa luta anti-colonial, mas sim a União Soviética (que incluía a Ucrânia) e, mais do que isso, que foi a “solidariedade socialista” – que incluía a Polônia, a Hungria, a Bulgária, a Roménia, os países bálticos, a Checoslováquia, etc. – que apoiou a luta. E não só. Que mesmo na União Soviética foi o Partido Comunista que não é o partido de Putin (que há muito deixou de ser “socialista” se é que alguma vez ele foi isso).
Depois temos as ideias. Existem duas principais. A primeira é defendida por um académico americano, John Mearsheimer, e tem o nome de “realismo”. É a ideia de que os interesses de segurança das potências se sobrepõe aos interesses dos países pequenos. A segunda é aquilo que podemos chamar de “ordem liberal de paz”. Diz que princípios como a soberania se sobrepõem a qualquer interesse. O realismo funciona na base da demonstração de que existem receios objectivos que justificam que uma potência se ponha em acção. A ordem liberal de paz, pelo contrário, procura saber como o direito internacional pode ser usado para responder aos interesses de segurança preservando o princípio da soberania.
Aqui as coisas começam a ficar complicadas porque noto que há pessoas que opinam sem consciência destas “ideias”. E um problema grave que resulta daí é que ficam com dificuldades em organizar os factos e, acima de tudo, correm o risco de incoerência. Por exemplo, o realismo – como ele é interpretado por Mearsheimer (que tem sido consistente) – obriga a quem o segue a fazer aquilo que em lógica se chama de “morder a bala”, isto é engolir as consequências amargas dum certo posicionamento. Assim, quem defende o realismo deve, em princípio, defender a ameaça americana de agressão de Cuba quando foi da crise dos mísseis, defender a agressão sul africana, nos tempos do Apartheid, à região, defender as intervenções americanas no Vietname, nos países árabes, na América Latina, etc. Só que ao fazerem isso, deixam de ter motivos para defender a posição russa, mas sim para se informarem melhor sobre o seu posicionamento. Uma das coisas mais frustrantes na discussão com essas pessoas é que não conseguem ver a sua incoerência. E isto é parte do que quero dizer quando faço a distinção entre opinião e conhecimento. Mearsheimer não teria nenhum problema em concordar com todas essas agressões. É coerente e fiel à sua ideia, e não é motivado por nenhum ressentimento ou sentimento de gratidão. Já aquele que provavelmente não reflectiu seriamente vê-se em apuros se for, claro, intelectualmente íntegro.
Quem argumenta a partir da ordem liberal de paz não tem esse problema. Agressão é agressão – porque viola o princípio de soberania. Ponto final. Já agora, é por isso que me é indiferente quando alguém diz “mas os EUA também fazem!” porque isso eu também condeno e ainda mantenho a minha coerência analítica. Mas a complicação ainda é maior porque conforme escrevi ontem ideias são estruturadas pela maneira como procuram salvaguardar valores. Dum modo geral, ainda que de forma simplista, a ideia do realismo é uma espécie de defesa da lei do mais forte ou dos fins que justificam os meios. Fácilmente, ela se transforma na ética da convicção no lugar da ética da responsabilidade.
Esta última distinção é basilar, pois ela nos leva ao fundo da questão. A ética da convicção só está preocupada com os resultados, não importa como eles são alcançados. Tem algo de fanático, isto é ela não encoraja a ponderação ética. A sanha assassina com a qual a Rússia de Putin faz esta agressão com os milhares de mortos (e pior: de jovens russos alistados) e a destruição desenfreada e gratuita da Ucrânia não mexe com as sensibilidades do realista porque a preocupação suprema é defender a prerrogativa do mais forte de salvaguardar a sua sensação de que a sua segurança está em perigo. Daí que aqueles que abraçam esta ideia – sem realmente terem reflectido devidamente – procurem refúgio em tudo que conforta a sua opinião inicial e tenham dificuldades em reconhecer as atrocidades russas (que muitas vezes negam com o argumento de que os EUA também fizeram o mesmo, ou que a Ucrânia também faz).
A participação de “líderes” africanos na Cimeira convocada por Putin é um exemplo desta ética de convicção fruto do apego à opinião. A sua representação do mundo consiste na ideia realista da existência de potências dominantes. Eles convencem-se de que abstendo-se eles mostram as nádegas da cobra ao Ocidente. Indo a São Petersburgo eles manifestam o seu desejo de viver num mundo que não seja unipolar. Só que isso, na ideia realista, é uma ilusão. Como eles são pequenos e sem expressão, o mundo multipolar pelo qual anseiam não é necessariamente um mundo que lhes dá voz. Dá-lhes, sim, um porta-voz, no caso Putin, que ainda os humilha reduzindo-as a esfomeados que vão agradecer a oferta gratuita de cereais em troca do favor que lhe prestam de obter respeitabilidade perante o seu próprio povo. Nunca foi tão vergonhoso ser africano!
Ver o Presidente de Moçambique naquela farsa – e ainda mais sabendo que Moçambique é membro do Conselho de Segurança – é angustiante. A participação destes “líderes” neste evento é uma rejeição inconsciente de todo o quadro normativo que nos permitiu conquistar a independência. Existe o grande equívoco de se pensar que a independência foi apenas possível graças à luta armada – e ao apoio do Leste. Mas as coisas são mais complicadas. Um factor decisivo foi também a referência a valores, um dos mais importantes dos quais foi a “auto-determinação”, por sinal defendido com certa veemência por Woodrow Wilson, um Presidente americano. Muita gente em metrópoles coloniais apoiou a luta dos africanos também por compromisso com esse valor. O apoio económico e humanitário maciço que temos todos recebido desde a independência não teria sido possível sem referência a valores. Os ocidentais podiam usar o argumento dos realistas africanos e dizerem “já que quiseram a independência, arranjem-se!”. Não seriam só os pobres africanos que iriam sofrer. As elites políticas que vivem desse apoio também sofreriam, razão pela qual reclamam, reclamam, reclamam, mas nunca se desligam da ajuda externa (que eu venho criticando há décadas, só para que conste!).
Nós os africanos, mais do que ninguém no mundo, temos um interesse bem especial em salvaguardar a soberania como um valor supremo nas relações internacionais. A ética da responsabilidade dá-nos muito mais espaço para a reflexão e, sobretudo, para encontrar o posicionamento que melhor protege os nossos interesses. Ao denunciar o acordo de cereais com as Nações Unidas a Rússia foi consequente na sua posição realista: os meios justificam os fins! Mas é mesmo do interesse de África permitir que o comércio internacional, a economia mundial e o direito internacional sejam sacrificados no altar da defesa dos interesses de segurança duma potência? E não só: qual é o plano B dos nossos “líderes” se as outras potências nos virarem as costas em defesa também dos seus interesses? Que base normativa teremos para exigir que nos respeitem? E porque devem elas nos respeitarem se nós defendemos a lei do mais forte?
O mais revoltante, contudo, e no caso específico de Moçambique, é que neste momento quem dá ajuda humanitária aos milhares de esfomeados em resultado da violência armada em Cabo Delgado – que resulta em parte da nossa própria inépcia política – quem até dá apoio militar para a defesa da nossa soberania, quem nos garante as migalhas na base das quais vamos sustentando o nosso enorme aparelho de estado – do qual vivem muitos que nutrem ressentimentos pelo Ocidente, e bem, diga-se de passagem – é o Ocidente. Não é a Rússia. O investimento directo russo em África representa apenas 1% do total. As trocas comerciais representam abaixo de 5% do nosso comércio com o resto do mundo. Só no fornecimento de armas é que os russos são campeões: 40%! Putin não cumpriu as promessas de duplicação do valor das trocas comerciais feitas em 2019. E eu quero viver para ver quando ele vai enviar os tais cereais aos seus lacaios em África...
E nem falei de tudo aquilo que seria necessário saber para realmente ter opinião sobre este assunto. Mas é o que falta nas deliberações da nossa classe política.
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