Antes Que A Gente Morra é um pequeno livro que reúne um punhado de pequenas histórias, de encontros e vivências que poderiam ter sido escritas por qualquer um que testemunhou, como o autor, o fim do colonialismo e tudo o que se viveu antes e depois da queda do estafado império português em África.
A narração divertida - rigorosamente na primeira pessoa - de uma vida repleta de personagens, míticos caçadores de caça grossa e refinados músicos, presidentes de Estado e guarda-costas de boîte, de praias e savanas.
Breve apontamento biográfico
Trago no sangue uma amplidão
de coordenadas geográficas e mar Índico.
Rosas não me dizem nada,
caso-me mais à agrura das micaias
e ao silêncio longo e roxo das tardes
com gritos de aves estranhas
Rui Knopfli em O País dos Outros
Nasci na Zambézia mas são do Saúte, um isolado posto administrativo no sul de Moçambique onde vivi com os meus pais e oito irmãos, as primeiras recordações da minha infância.
Aquele cheiro doce da cera no chão encarnado das varandas e do petróleo das geleiras, as pancadas no pedaço do carril suspenso da árvore gigante a anunciar a abertura da administração, o arranque do gerador e o chiar da morcegada nos beirais de zinco do velho casarão, ao cair da noite.
Uma toalha aos quadrados estendida sobre o capim à sombra de uma árvore no meio do mato e a mala verde dos piqueniques, carregada de pratos e copos presos por tiras de cabedal que a nossa Mãe usava para servir sanduíches, as fatias de bolo e as bolachas, bebermos o leite com Toddy ou água do saco de lona, pendurado na antena do Land Rover.
As manadas de animais nas extensas planícies do Banhine. O grito do Jorge a chamar pelo nosso pai e apontar para a barriga da zebra morta, e de todo o cuidado, depois de muita gritaria e agitação, com que a recém-nascida foi colocada so- bre uma manta no tejadilho do jeep e transportada sã e salva até à casa, onde passou a ser família.
Um dia tudo isso mudou. A transferência do nosso pai obrigou-nos a ir viver para a capital, Lourenço Marques, a cidade grande e bonita, cheia de casas, prédios e de gente nas ruas, onde aprendi a ler e a escrever, a fazer contas e a decorar as serras, rios e apeadeiros de comboios de terras desconhecidas. As primeiras idas à praia, a bicicleta encarnada da marca Robin Hood, o exame na Rebelo da Silva e o reluzente Cauny no pulso, prémio pela admissão ao liceu.
Os novos colegas, os novos amigos, as festas, o primeiro beijo numa matiné do Scala, a primeira vez que nenhum dos dois gostou, as divertidas experimentações proibidas de plantas tropicais e o rock dos Zeppelin e Jethro Tull, no turbilhão de uma adolescência quase feliz pela vida acima até saber da guerra, entender a História e antecipar o fim do sonho numa terra que afinal nem era de Portugal.
Aos 18 anos, uma inspecção militar declarou-me mancebo apto para todo o serviço e juntei-me a um grupo de amigos fugitivos das recrutas de Boane que se aventurou pelas Américas do Sul. Voltei depois do célebre Abril mas por muito pouco tempo. Vagabundo, inquieto e curioso, optei por não participar no intolerante processo da revolução moçambicana e ir conhecer Lisboa.
A maior parte das histórias, dos encontros e das vivências neste pequeno livro, poderiam ter sido escritas por qualquer um que testemunhou, como eu, o fim do colonialismo e tudo o que se viveu antes e depois da queda do estafado império português em África.
E que melhores palavras podia escolher que as de Knopfli para dizer que também a mim sempre me atraíram as amplidões geográficas, o gosto pelo silêncio roxo das tardes e a agrura das micaias?
E como as rosas nunca me disseram muito, em 95 regressei ao Índico. Àquele país dos outros.
Novembro de 2022
NOTA: Os meus parabéns ao Nuno. À venda nas livrariias. Páginas 200.