Volvidos oito anos desde que este assunto das dívidas não-declaradas foi despoletado, é correcto concluir que, hoje, sabemos mais sobre este assunto do que sabíamos em 2015. De tudo quanto ouvimos, lemos e debatemos, no passado, a que conclusão chegamos, hoje, em face de todas as informações e evidências? Se a nossa opinião mudou, então qual é a nossa obrigação moral e intelectual? A nossa acção, doravante, irá determinar a nossa posição, se somos vítimas ou cúmplices.
Para quem consultar os principais jornais da época irá, certamente, perceber o sentimento de revolta e repulsa popular em relação ao assunto. A mídia local e internacional lançava a ideia de um “ocultismo gângster” na contratação dos projectos e pedia-se toda a sorte de coisas ominosas contra os perpetradores. E, no intuito de entender os processos envolvidos à volta destes projectos, institui-se a Comissão Parlamentar de Inquérito que veio dar alguma sobriedade e lucidez no entendimento dos projectos, para além, obviamente, das recomendações correctivas para amenizar a situação. Insatisfeitos, os promotores da narrativa de “problematização e escandalização” trouxeram a empresa britânica Kroll para conduzir uma auditoria independente às contas das empresas ProIndicus, EMATUM e MAM, assim como a todos processos envolvidos na criação das empresas e contratação e financiamento dos projectos, bem como a sua gestão. Até aqui, tudo bem!
Em 2017, a Kroll concluiu os trabalho de auditoria independente, realizados sob a liderança da Procuradoria Geral da República, e submeteu o Relatório da Auditoria Independente às Empresas ProIndicus, EMATUM e MAM. É aqui onde a porca começa a torcer o rabo e as coisas começam a mudar de figura.
O primeiro sinal de alarme surge quando a PGR recusa-se a publicar o relatório completo alegadamente porque queria “proceder à verificação e análise do relatório, com vista a aferir a sua conformidade com os termos de referência.” Ora, os termos de referência para a auditoria, divulgados pela PGR, elencavam os seguintes objectivos:
- a) A análise dos contratos de financiamento e demais documentos relativos a empréstimos contraídos, como no caso de garantias prestadas pelo Estado, incluindo a utilização de fundos de empréstimos;
- b) A análise dos processos de aquisição de bens e serviços financiados pelo recursos aos empréstimos;
- c) A avaliação do desempenho dos deveres fiduciários por parte dos administradores das sociedades auditadas, bem como apuração da possibilidade de desvio de recursos, gestão lesiva ou atividade ilícita nas sociedade dos contratos de financiamento.
Analisado o relatório pela PGR, após vários adiamentos, esta decide divulgar o mesmo mas com duas ressalvas, nomeadamente a) não publicar todo o relatório, mas sim um sumário executivo, e b) omitir os nomes dos agentes do estado implicados neste processo. Na altura, o representante do FMI em Moçambique Ari Aisen, foi citado pela DW (13/05/2017) afirmando que “a entrega do relatório de auditoria internacional forense à EMATUM, ProIndicus e MAM à Procuradoria Geral da República de Moçambique é bem vinda. Esperamos a publicação de um resumo do relatório completo, até o final do mês e, no devido tempo, do relatório completo.”
As organizações da sociedade civil, indignadas, pressionavam para que o relatório de auditoria internacional forense fosse divulgado nos exactos termos em que havia sido submetido pela Kroll. No seu comunicado, a FMO assevera que com a divulgação do relatório a PGR temia que podia comprometer a “identidade dos autores, valor envolvido, instituições nacionais e estrangeiras participantes na operação.” Este é que era o medo real em divulgar o relatório.
A The Economist Intelligence Unit (EIU), citado pelo “Economia ao Minuto”, publicado no dia 10 de Abril de 2017, por sua vez, avançou o seu pensamento segundo o qual “Gerir a divulgação do relatório é uma iniciativa necessária.” Porquê? Porque “os empréstimos foram contraídos pela poderosa agência de inteligência do Estado com garantias soberanas assinadas pelo Governo e as autoridades, por isso, vão tentar evitar que qualquer culpa criminal fique ligada a pessoas influentes no Executivo”
Esta era, sem dúvidas, a fundamental razão pela qual a PGR mostrava-se relutante em divulgar o relatório nos termos em que havia sido submetido pela Kroll. Ele tinha de passar por um aturado processo de “censura e ocultação de identidade dos implicados”.
Segundo o Notícias ao Minuto, na sua página Economia ao Minuto, cita os economistas do EIU afirmando que para lograr os seus intentos de “evitar que qualquer culpa criminal fique ligada a pessoas influentes no Executivo”, a PGR decide não fazer constar no sumário executivo “os nomes dos envolvidos devido a questões legais, já que a Procuradoria Geral da República esta a levar a cabo uma investigação que corre paralelamente à auditoria da Kroll.” Investigação paralela?! A quem? Com que objectivo? A publicação Notícias a Minuto responde a esta pergunta escrevendo que a PGR “fez um pedido para ter acesso às contas bancárias do antigo presidente Armando Guebuza e de outras 17 pessoas e instituições.” Porquê a PGR abandonou os seus próprios termos de referência e foi conduzir uma investigação paralela ao antigo Presidente Guebuza e pessoas da sua entourage e outras?
Fica aqui claro que a investigação paralela, segundo ficou estabelecido nas sessões de audição, discussão e julgamento do processo das dividas ocultas, incidiu sobre pessoas que nada tinham a ver com o verdadeiro processo das dívidas ocultas auditado pela Kroll. A suposta investigação paralela visava apenas selecionar os bodes expiatórios para apresentá-los ao povo como sendo os verdadeiros implicados neste intricado processo. Os analistas do EIU foram, na altura, “videntes” quando afirmaram que “Se a Procuradoria Geral da República lançar procedimentos criminais contra os indivíduos que considera responsáveis e que suspeitamos serão ‘bodes expiatórios’, antes da publicação da auditoria, o Governo pode esperar aparecer como duro com a corrupção, sem criminalizar os verdadeiros responsáveis envolvidos.” Foi o que exactamente aconteceu!!!
Para demonstrar a veracidade desta conclusão, convido o caro leitor a avaliar cada um dos objectivos da auditoria forense internacional levada a cabo pelas Kroll em função de cada arguido das dívidas ocultas e ver se tem algum nexo. A conclusão a que se chega é que cerca de 90% dos arguidos e condenados deste processo não foram contemplados pela auditoria forense internacional da Kroll, pois não são cobertos pelos Termos de Referência produzidos pela própria PGR. De todos os arguidos, presos e não, apenas dois (2) é que foram inquiridos pela auditoria da Kroll. Quase todas as pessoas inquiridas pela auditoria da Kroll não foram tornadas arguidas no processo 18/2019-C, mormente conhecido por processo das dívidas ocultas. A pergunta que deve ser feita é: Porquê? Pourquoi? Why? Hoekom? Warum? Limadha? Wèishéme?
A resposta é dada pelos peritos da The Economist Intelligence Unit segundo a qual porque “os empréstimos foram contraídos […] com garantias soberanas assinadas pelo Governo e as autoridades, por isso, vão tentar evitar que qualquer culpa criminal fique ligada à pessoas influentes no Executivo”. Foi isto o que exactamente aconteceu. Não conseguimos encontrar nenhuma outra resposta que faça sentido. Não foi desleixo e nem incompetência, mas sim uma acção deliberada de proteger figuras ligadas ao executivo e sacrificar inocentes.
Adicionalmente, o objectivo c) dos Termos de Referência também faz referência à “avaliação do desempenho dos deveres fiduciários por parte dos administradores das sociedades auditadas”. Ora, todas as empresas envolvidas nestes processos tinham os seus conselhos de administração que tinham deveres fiduciários em relação à gestão das empresas e a prestação de contas perante os seus accionistas. Vale dizer que quase todos membros dos conselhos de administração das três empresas eram funcionários públicos que, estranhamente, não foram responsabilizados pelas decisões por si tomadas na gestão das empresas. Nenhum deles é arguido dos processos relativos às dívidas ocultas, com a excepção de um (1) dos dois (2) bosses da secreta que era o Presidente do Conselho de Administração das três (3) empresas.
Ademais, é sobejamente sabido que o Relatório Completo (Full Report) da Auditoria Internacional Independente às Empresas ProIndicus, EMATUM e MAM conduzido pela Kroll ainda não foi divulgado. Lá, constam os nomes de todos os implicados directamente envolvidos no processo da contratação das dívidas e os respectivos actos por si praticados. Até quando esta ocultação? Não vos parece estranho que a PGR não tenha feito referência a este relatório durante as longas sessões de audição, discussão e julgamento das dívidas ocultas? Porquê não o usou como o documento de referência para sustentar a acusação? Segundo o Ari Aisen, representante do FMI em Moçambique, dizia que “em devido tempo” seria divulgado o relatório completo. Quando é que o “devido tempo” chegará? O quê que deve acontecer para que “o devido tempo” chegue? As respostas ficam por vossa conta.
Muito bem!! Chegados a esta parte, com base em todas as evidências, qual é o proceder correcto que deve ser tomado pelos jornalistas, comentadores, políticos, analistas e tantas outras pessoas que, ao longo do tempo, emitiram opiniões pouco informadas em relação a este processo? São várias pessoas que comentavam em várias plataformas nomeadamente jornais, televisão, Facebook blogs, e outras plataformas digitais que, com escárnio indisfarçável, ultrajaram pessoas. No mínimo esperávamos que essas pessoas, uma vez conhecendo a verdade, deviam se retratar, não para pedir desculpas a ninguém, mas sim para corrigir os erros em que induziram os seus leitores e ouvintes.
Esta acção consciente determinará se, efectivamente, tudo quanto fizemos ou dissemos, fizemo-lo como vítimas de uma cabala mentirosa movida pelos círculos ligados ao poder do dia, ou fomos parte da mesma. Será que fomos vitimas inocentes ou somos cúmplices conscientes!?
In https://integritymagazine.co.mz/arquivos/15028
NOTA: "Ademais, é sobejamente sabido que o Relatório Completo (Full Report) da Auditoria Internacional Independente às Empresas ProIndicus, EMATUM e MAM conduzido pela Kroll ainda não foi divulgado." Há muitos anos que o MOÇAMBIQUE PARA TODOS divulga o relatório da Kroll. Basta ir aqui https://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2017/09/relat%C3%B3rio-kroll-disponibilizado-na-%C3%ADntegra-em-ingl%C3%AAs.html