Moçambique vive uma histórica e violenta crise pós-eleitoral, mas o académico João Mosca entende que o partido no poder não tirou nenhuma lição do facto.
Face à onda de contestação pós-eleitoral e acusações de "megafraude" nas autárquicas de 11 de outubro, o académico João Mosca acredita que algumas alas da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) não se pronunciam sobre o assunto por receio de perder as suas benesses.
Até o Presidente da República, Filipe Nyusi, está em silêncio, mesmo sobre a violência policial contra cidadãos que foram para as ruas protestar contra os ilícitos no escrutínio.
DW África: Era de se esperar uma palavra do Presidente Filipe Nyusi face a esta crise pós-eleitoral?
João Mosca (JM): Normalmente sim, podia-se esperar um discurso dele, mas quem conhece Moçambique e a FRELIMO sabe que este silêncio acaba por entrar na normalidade do comportamento do poder político face a situações de crise.
Isto não é só de agora, já há décadas que este partido tem este tipo de estratégias de atuação em situação de crise, de maneira que é perfeitamente natural.
Por outro lado, o Presidente está numa situação crítica não só interna à FRELIMO, devido à grande contestação dos seus camaradas e à perda da sua credibilidade e apoio dentro do partido que o sustenta. Coloca-se também em consideração as eleições gerais no próximo ano. A FRELIMO e Filipe Nyusi saem fortemente fragilizados desta situação eleitoral. Naturalmente, eles querem voltar a ganhar as eleições, ganhar sempre de forma fraudulenta – isso também é histórico em Moçambique.
DW África: Costuma dizer-se que "quem cala consente". Este é um adágio que se pode aplicar à chamada "velha guarda" da FRELIMO em relação à atual crise pós-eleitoral?
JM: Atualmente, dentro da FRELIMO, há três ou quatro grupos muito poderosos de contestação à atual governação. Mas atenção: A FRELIMO dificilmente se desmembra, dificilmente se desarticula ou cria ruturas, porque tem algo muito mais importante a preservar, que são os negócios das elites da FRELIMO – são negócios milionários sem qualquer base de suporte técnica, material, empresarial, vivendo à base de rendas do capital interno e externo, vivendo de situações de corrupção direta e de participação em empresas. Daí que, essa minoritária elite da FRELIMO, não se pode desmembrar, porque os grandes interesses económicos poderiam também entrar em situação de crise e de lutas entre eles próprios.
Essas lutas existem, mas são silenciosas, mas nunca trazem ruturas violentas dentro da FRELIMO. Poder político e negócios são duas bases que se articulam perfeitamente e que não permitem que a FRELIMO se desmembre dentro dela própria.
DW África: O país nunca viveu uma movimentação de contestação tão grande, em contexto eleitoral, como a que está a viver agora. Acha que a FRELIMO tirou alguma lição de toda esta crise?
JM: Os primeiros discursos que houve após o conhecimento dos resultados finais, seja do secretário-geral [da FRELIMO, Roque Silva], seja da ministra dos Negócios Estrangeiros, [Verónica Macamo,] foram absolutamente prepotentes.
A ministra dos Negócios Estrangeiros, que é absolutamente ineficiente e incompetente, disse que a FRELIMO já está habituada a contestações pós-eleitorais e que isto iria passar, pois a FRELIMO ganhou e mereceu esta vitória devido à sua boa governação.
Este é um discurso absolutamente contra a corrente da situação política, pois é muito fácil de compreender que a FRELIMO não entendeu o que deve fazer. Se há vozes internas, é uma ou duas, e o resto mantém-se calado porque tem receios que os seus pronunciamentos afetem as suas benesses pessoais.
DW – 30.10.2023