(E agora, Excelência, o que se segue...?!)
Por Afonso Almeida Brandão
Os incríveis eventos ocorridos durante todo o histórico dia 7 de Novembro de 2023, a que todos nós assistimos, incrédulos, tiveram como ponto alto a inesperada apresentação do pedido de demissão do Primeiro-Ministro António Costa ao Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa que, prontamente, a aceitou com a consequente queda de todo o XXIII Governo Constitucional.
A demissão do Primeiro-Ministro foi bastante chocante pelos motivos em que a mesma se consumou. Afirmando, o próprio PM demissionário — naquela que é já uma histórica comunicação ao país — ter sido “surpreendido” com o processo-crime por suspeitas no caso do lítio e hidrogénio que o visa e que irá resultar numa investigação criminal, entretanto confirmada, junto do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), uma vez que por lei o Primeiro-Ministro tem direito a foro especial e só poderá ser investigado pelos serviços do Ministério Público naquele tribunal superior. Mais referindo desconhecer aquilo de que é exactamente acusado, muito embora tenha sublinhado que, em resultado desta situação, i.e., recaindo sobre si uma suspeita desta natureza e com esta dimensão, não pode continuar a exercer as suas actuais funções no Governo.
Mas, independentemente do que vier a ser o desenrolar deste novo caso na Justiça e sem prejuízo do benefício da presunção de inocência, enquanto direito fundamental que a todos os cidadãos assiste num Estado de Direito democrático, politicamente, estas escabrosas situações, cada vez mais frequentes e generalizadas no seio dos variados poderes políticos, sejam de cariz local e autárquico, regional e autónomo, ou nacional, envolvendo titulares de cargos governativos. Nomeadamente — e pela segunda vez — um Primeiro-Ministro de um Governo da República, mas também, não o esqueçamos, existindo igualmente no próprio poder judicial como muito bem sabemos, é algo que não nos dignifica como povo e país membro da União Europeia.
Na realidade, somos os grandes culpados desta cultura de pouca ou nenhuma seriedade ética no exercício de cargos públicos, porque há já muito tempo que pusemos de lado quaisquer critérios de exigência — se é que alguma vez os tivemos —, não apenas para com aqueles que nos representam para gerir a coisa pública e/ou para escrutinar quem gere essa mesma coisa pública, como, de resto, para com qualquer outra matéria ou situação da vida em sociedade. Na escola, no trabalho, na família, com os amigos em tudo o que nos rodeia passámos a tolerar, a aceitar, a desculpar ou simplesmente a esquecer aquilo que sabemos ser intolerável, inaceitável, indesculpável e, a todos os títulos, inesquecível no sentido de não querer que se repita.
A verdade é que somos ou tornámo-nos assim. Esta característica de nós próprios talvez seja a versão actualizada dos “brandos costumes” com que fomos domesticados pela força do autoritarismo do Estado Novo e, entretanto, atraídos não pelo encanto das ideologias, nem pelo dom da palavra, em liberdade, mas antes pelas benesses, pelos favores, pelo compadrio e pela ganância dos violadores da democracia.
Foi assim que aceitámos ser enganados em 2011 e pagámos a factura nos anos seguintes.
Foi assim que tolerámos a subversão democrática da escolha que fizemos em 2015.
Foi assim que desculpámos tudo o que nos tinham feito e culpámos quem culpa não teve.
Foi assim que rapidamente nos esquecemos ou simplesmente não quisemos saber.
Foi assim que vimos entrar neste Governo muitos dos que antes tinham estado no outro.
Foi assim que assistimos a tantas ligações familiares no Governo e na Administração.
Foi assim que confirmámos muitos ajustes directos entre o Estado e empresas de amigos.
Foi assim que constatámos casos atrás de casos que terminaram em demissões sucessivas.
Tudo isto é, antes de qualquer outra coisa, matéria estritamente ética e política que nunca poderia ter sido ignorada como manifestamente foi.
Num país com uma sociedade forte e exigente consigo mesma e, por conseguinte, com quem politicamente a representa, um partido político como o PS, depois do que ocorreu em 2011, não voltaria a ser Governo por vontade popular num prazo mínimo de 30 anos. Mas em Portugal o PS voltou a ser Governo sem ter vencido eleições apenas quatro anos após ter condenado o país a uma situação de quase falência financeira com forte repercussão Económica e Social.
Justo é também lembrar, aqui e agora, que isto tudo que aconteceu apenas foi possível por conta do inestimável empenho e entusiasmo do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista Português que, mais do que viabilizar, incentivaram a constituição daquele que ficou conhecido como o Governo da “geringonça”. Portanto, reconheça-se, merecidamente, estes dois partidos da Extrema-Esquerda como grandes responsáveis por esta criação política.
Bizarro foi também assistir, ao longo de todo aquele dia, a uma enxurrada de jornalistas e comentadores especializados em “tudologia” a debitar em toda a comunicação social disparates e a demonstrar, convictamente e em directo, a sua total ignorância constitucional. Designadamente abordando os passos seguintes da futura aplicação do Orçamento do Estado para 2024, uma vez que o mesmo, como iam explicando, está já aprovado na generalidade pela Assembleia da República e pode ainda ser aprovado na especialidade antes da verificação da produção dos efeitos da demissão do PM.
Ora, como é evidente, bastaria fazer uma pequena análise muito rápida da nossa Constituição para se perceber que, em virtude da queda do Governo, por força da aceitação pelo Presidente da República do pedido de demissão apresentado pelo primeiro-ministro, nos termos do artigo 195º, n.º 1, al. b) da Constituição da República Portuguesa (CRP), independentemente daquela que venha a ser a solução política por si decidida quanto ao próximo Governo, o Orçamento do Estado, configurando uma proposta de lei, encontra-se caducado, nos termos do artigo 167º, n.º 6 da CRP.
Mas o que mais me incomodou, para além da visível acefalia militante dos muitos apaixonados pela personalidade (certamente mais do que pelo legado) de Costa, entre outros tantos negacionistas da realidade política que estávamos todos ali a viver com intensidade, foi a completa desatenção aos pormenores que ninguém viu ou não quis ver relativamente aos dois comunicados do Presidente da República.
Refiro-me ao facto de o PR ter dado nota da aceitação da demissão do PM, o que colocou imediatamente o Governo em gestão. Bem como ter indicado expressamente que iria convocar o Conselho de Estado, ao abrigo do artigo 145º, alínea a) da CRP. E, noutro comunicado ter mencionado taxativamente que iria ouvir os partidos políticos representados na Assembleia da República, nos termos do disposto na alínea e) do artigo 133º da CRP.
Pois bem, o artigo 133º da CRP reporta-se à competência do PR quanto a outros órgãos. Estipulando, em especial, a alínea e), a sua competência para: “Dissolver a Assembleia da República, observando o disposto no artigo 172º, ouvidos os partidos políticos nela representados e o Conselho de Estado”. Já o artigo 145.º da CRP, tipifica as competências do Conselho de Estado. Sendo a alínea a), relativa à sua competência para: “Pronunciar-se sobre a dissolução da Assembleia da República (…)”.
Como se conclui: à demissão apenas dissolução!