Por António José Canhandula *
Existe uma percepção pública, que os meios de comunicação social avançam e que nos quer fazer crer, que a religião seria um elemento central do conflito em Cabo Delgado. Esta percepção tem tendência de transformar a religião em arma, camuflando a verdade e viciando as nossas análises. A religião não é o motor nem ocupa lugar central no conflito.
O elemento externo de que se fala tem encontrado terreno fértil, na ausência de políticas eficazes para as comunidades rurais. Em Cabo Delgado, as pessoas foram dramaticamente deslocadas pela indústria do gás, com 18.000 hectares de terras oferecidas à Cidade do Gás, deslocando pescadores e desenraizando agricultores das suas plantações, com ofertas alternativas de terras de qualidade marginal para o seu reassentamento (Aldeia Kitunda), acompanhadas de falsas promessas de empregos e compensações.
Essas deslocações forçadas de populações não são as primeiras: A indústria extrativa de pedras preciosas e da madeira em Cabo Delgado resultaram em grandes extensões de terra que foram privatizadas e forçaram a deslocação de populações sem diálogo, reduzindo o espaço do pequeno agricultor e criminalizando a pequena exploração mineral artesanal. Estas deslocações forçadas vêm muito antes do início da guerra.
Com a intensificação da guerra em Cabo Delgado, desde 2021, as Forças Armadas moçambicanas destacaram 600 soldados para proteger as instalações do gás e o Ruanda posicionou 2.000 soldados e polícias antes de a SADC também ter destacado 2.000 na Província. Outros países europeus como Portugal apoiam a formação de soldados, a América também presta apoio. Assim, Cabo Delgado é um teatro de diversas e várias forças militares e de segurança.
Trabalhei em países em conflito e com uma presença militar estrangeira sob o pretexto de combate ao terrorismo: RDC, Níger, Mali, Angola. Posso afirmar que nenhuma intervenção militar estrangeira foi base de resolução de conflitos internos. O que nos deve levar a interrogar de forma frontal e sincera: como é que os acordos regionais de segurança vigentes contribuem para o empoderamento de Moçambique?
A TotalEnergies, um agente económico estrangeiro importante na exploração do gás de Cabo Delgado, e o mais engajado para o recomeço da exploração interrompida pelas ações terroristas, encomendou um estudo a um perito de segurança para analisar os problemas emergentes e como lidar com eles quando ela decidir retomar as operações. O especialista, Jean-Christophe Rufin, submeteu um relatório que a TotalEnergies divulgou no mês de Maio de 2023 e que identifica os seguintes motores do conflito: Desigualdades entre o Sul e o Norte do País, rivalidades étnicas, heranças da Guerra entre a Frelimo e a Renamo, ausência de serviços públicos, acesso a terra e aos recursos naturais, organizações mafiosas que circulam no território, influencias regionais, e em último lugar (ênfase minha) o Jihadismo internacional.
O relatório recomenda ações a serem tomadas pela TotalEnergies, ações essas que representam uma faca de dois gumes. Embora, por um lado, se aborde o impacto negativo da indústria do gás sobre a populaça de Cabo Delgado, por outro, são sugeridas medidas que acarretam não só riscos, mas também um sentido de negatividade contra o estado Moçambicano, o mesmo estado que fez largas concessões a TotalEnergies, negatividade essa que deve ser abordada frontalmente. Entre elas, a criação de um fundo de 200 milhões de dólares americanos para ações de responsabilidade social corporativa (CSR) em Cabo Delgado nos próximos dez anos. O relatório propõe que a TotalEnergies trabalhe com uma agremiação local chamada Pamoja Tunaweza (traduzido do suaíli significa: “Juntos nós podemos”), transformando-a em fundação. Ora esta abordagem tem dois efeitos nefastos imediatos:
• Ao canalizar para uma ONG um investimento de $20 milhões por ano para projetos sociais numa província onde o governo traz poucos projetos de desenvolvimento, fica clara a intenção de minimizar a importância do estado, que passará a ficar ainda mais alienado de uma população já alienada pela guerra.
• Enquanto o governo criou a muito divulgada Agencia de Desenvolvimento Integrado do Norte (ADIN) como resposta à flagrante falta de progresso na Província desde a independência, a estratégia da TotalEnergies de contribuir para o desenvolvimento colocando recursos nas mãos de Pamoja Tunaweza, (como forma de escapar à corrupção que aflige o governo) é perigosa porque desta forma, uma ONG passaria a colocar em toda a Província mais recursos do que o próprio governo, contribuindo assim para tornar a ADIN um ator fraco, desacreditado e irrelevante e dando a uma ONG responsabilidades estatais.
O relatório propõe também que a TotalEnergies trabalhe com as forças militares do Ruanda e cesse a sua cooperação com as forças armadas de Moçambique, a pretexto de uma questão de capacidades e de abusos de direitos humanos. Estes são os primórdios da proclamação de um enclave soberano num país soberano, com orçamento e aparato de segurança distintos. O estudo da TotalEnergies, compreensivelmente, mas também perigosamente, é egoísta. A questão de soberania pode ter estado na base da relutância inicial do Presidente Nyusi em pedir ajuda externa para repor a segurança em Cabo Delgado.
A soberania é interrogada de forma mais contundente ainda: depender mais das forças armadas Ruandesas, e afastar as forças armadas Moçambicanas do seu próprio território parece-nos uma tentativa de criar um enclave autónomo em Moçambique pela força do dinheiro. E isso deve preocupar Moçambique porque o papel de certas forças irmãs estrangeiras estacionadas em Cabo Delgado e financiadas pela União Europeia passaria a ser, portanto, de facilitar a separação de uma parcela do território.
Cabo Delgado pode ser outro Biafra. O estado deve estudar o comportamento histórico dos seus parceiros e exercer vigilância. Eu trabalhei na Nigéria e fiquei com o claro sentido de que a história do Biafra foi branqueada, mal contada e cujos efeitos nefastos ficaram atribuídas apenas a forcas internas: ao Coronel Odumegwo Ojukwu, contra o general Obasanjo e outros atores militares nacionais. O que fica por narrar é que a França, não só apoiou os rebeldes, mas tinha desígnios territoriais sobre a zona petrolífera (Delta State).
A salada russa criada pela presença de diversas forças militares em Cabo Delgado não nos faça esquecer que nenhum exército estrangeiro pode resolver um problema nacional, seja lá donde for. Urge, portanto, que todas as forças estrangeiras declarem a sua estratégia de saída, ou sejam constrangidas a tal pelo estado Moçambicano. E que o estado Moçambicano optimise a presença militar estrangeira para o reforço da sua capacidade, afim de reafirmar/repor a sua soberania territorial.
O que nos leva a outra questão: de que forma são eficazes os dispositivos de segurança regionais? Nós achamos que elas são muito eficazes. Mas que é necessário que agora se negocie e se adopte uma estratégia a médio prazo de saída de todas as forças estrangeiras presentes em Cabo Delgado: Apostando, na formação e organização, na disciplina e éticas de guerra e na prontidão combativa das forças armadas nacionais. Assim é que se pode dizer que as forças estrangeiras contribuíram para o fortalecimento do país. Caso contrário, continuarão estacionadas e a fragilidade do exército nacional continuará a ser justificação para uma permanência sine die. Numa Província muito rica em recursos, não só de gás, mas também rubis, madeira, ouro, pedras preciosas, grafite e outros, o risco é grande de as forças militares estrangeiras permanecerem e participarem de maneira camuflada na exploração dos recursos. Em cujo caso, o fim da guerra torna-se um objetivo secundário e até contrário aos interesses que estão ganhando raízes.
* Antigo representante do Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados na Tanzânia