(Oliveira Salazar assume a Chefia do Governo a 5 de Julho de 1932)
. por Afonso Almeida Brandão
Quando, em dia de canícula, me entretinha pela internet em busca de Quintas e Palacetes nos arredores de Lisboa, deparei-me com uma revelação assaz surpreendente: na Quinta do Sobralinho, a 28 quilómetros da Capital pela A1, Concelho de Vila Franca de Xira, existia no Palácio do mesmo nome um quarto secreto, alegadamente utilizado por Oliveira Salazar em aventadas circunstâncias.
Pesquisando com mais detalhe encontrei múltiplas notícias do mesmo teor sensacionalista, até estampadas na Imprensa (dita) Regional. Nada para admirar, já que me habituei, ao longo destas últimas décadas, a referências sobre o mentor do Estado Novo, invariavelmente críticas, apoucantes, falsas, mentirosas e recorrentemente injuriosas.
Neste caso era diferente. A invocação do Estadista servia sobretudo, mas não só, para chamar a atenção, em publicidade gratuita, para a oferta de um núcleo turístico, constituído por uma aprazível Quinta a rodear um magnífico palácio, sob a denominação conjunta de “Sobralinho”. Actualmente pertença da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, oferece-se como local privilegiado para casamentos, baptizados e até estadias sem serviço de refeições.
O mais curioso é que a própria Edilidade se deixa tentar pelo chamariz do nome de Salazar e do seu presumível quarto secreto, para facilitar a venda do seu produto hoteleiro.
Do apanhado a que procedi, tão amplo quanto me foi possível, das notícias “postadas”na Internet, que tentei complementar com as devidas consultas bibliográficas, cheguei a uma conclusão: até prova documental em contrário, nada, mas mesmo nada, me afiança que esse quarto oculto e secreto, de facto existente na Biblioteca do Palácio, tenha alguma ligação, mesmo remota, com a figura do Presidente do Conselho de Ministros do Estado Novo.
Na sua maioria, os autores das informações dedicadas ao assunto, salvaguardam-se no anonimato. E fazem bem, porque quase todos bolsam tamanhos dislates que é prudente e sensato não darem o nome.
Copiando-se uns aos outros, repetem à saciedade os factos mais conhecidos, nada adiantando de novo e deixando por saber o que até hoje não se desvendou. Um que outro sempre tenta insinuar algo para denegrir quem governou Portugal por quase meio século. É o caso daqueles que aventam a hipótese, ou afirmam mesmo, que Salazar, timorato, ali buscava refúgio, aquando de alguma crise política de cariz militar. Puro engano. Salazar assume a chefia do Governo a 5 de Julho de 1932. Na sequência de outros frequentes levantamentos anteriores, no decurso da Ditadura Militar, ocorre a 17 de Janeiro de 1934 nova tentativa de golpe castrense, que será o derradeiro, até 1974… Ora, conforme as agendas/diários de Oliveira Salazar, fonte primordial para a História do período, este com outros membros do executivo, busca abrigo, primeiro no Governo Civil, transferindo-se depois para o Quartel de Caçadores 5, em Campolide. Portanto, não mais tendo havido qualquer sobressalto de intentona militar, o quarto secreto no Palácio do Sobralinho, jamais serviria de refúgio para uma eventual necessidade que não existiu…
Mas seguramente mais hilariante, por ignara, é a opinião vertida por alguém, que não assina, na colecção Vila Franca de Xira… Saber Mais, que à época (c. 2013) se vendia por 3,00 euros o exemplar. Pelo rol de asneiras que contém, acho que o preço até é excessivo… Na rúbrica “O esconderijo secreto de Salazar” o articulista afirma que “Salazar manteve um esconderijo secreto no Palácio do Sobralinho ao longo da primeira metade da Década de 50”. Explanando melhor a sua estória, acrescenta que a Mansão pertencia ao banqueiro Ricardo Espírito Santo Silva que “acedeu de imediato ao capricho do ditador”. Sem explicitar de que «capricho se tratava», prossegue a narrativa, afirmando que a ideia teria partido de Franco Nogueira, “delfim e homem de inteira confiança de Salazar”.
Acontece que o ainda então jovem diplomata, depois de quatro anos e meio em Tóquio, seu primeiro posto no estrangeiro, permaneceria no Ministério em Lisboa ainda na categoria de 1º Secretário de Embaixada por mais três anos. Só em Março de 1944 é promovido a Conselheiro de Embaixada, para logo partir para Londres como Cônsul-Geral.
Não faz assim o mínimo sentido ligar o nome de Franco Nogueira, repito então um simples 1º Secretário de Embaixada, ao todo poderoso Chefe do Governo.
Demais, nem na Obra Biográfica em seis volumes que dedicará muito mais tarde a Salazar, nem em qualquer outro escrito da sua autoria, há a mínima referência a relações com o Chefe do Governo nesta fase da sua vida. Só em Maio de 1961, quando havia já ascendido a Director-Geral dos Negócios Políticos em Dezembro de 1959, o seu nome é sugerido a Salazar, pelo então Ministro dos Negócios Estrangeiros, embaixador Marcello Mathias, para ser o seu eventual sucessor, como veio a acontecer.
Portanto, na referida Primeira Metade da Década de 50, Franco Nogueira não mantinha qualquer relação ou um mínimo de convivência com o Presidente do Conselho. Donde dizer-se, à época, que era um “delfim e homem de inteira confiança de Salazar” é verdadeiramente pôr o carro à frente dos bois!… Um disparate infeliz e inaceitável.
Posso, no entanto, acrescentar que, segundo as Agendas/Diários de Salazar, este anota, por duas ou três vezes, a presença do diplomata em S. Bento, a servir de intérprete, aquando de audiências com personalidades anglo-saxónicas, dado que Salazar percebia o inglês, mas não o dominava completamente. Isto, porém, acontece quando Franco Nogueira desempenhava a função de Adjunto do Director dos Negócios Políticos em 1958.
Mas voltando ao Sobralinho e ao decantado quarto secreto, há ainda que aludir aos tenazes defensores da suposta existência de uma pujante vida amorosa do governante.
Para estes o espaço oculto no Palácio poderia ter servido para “furtivas aventuras clandestinas”… Crê-se dispensável tecer comentários…
Na tentativa de aprofundar elementos susceptíveis de esclarecer a matéria em apreço, cuidei de recolher as informações disponíveis sobre o historial do Palácio e dos seus sucessivos proprietários. Lamentavelmente, os resultados obtidos verificaram-se escassos, genéricos e nada rigorosos:
— Edificação em 1661 a mando do 1º Conde de Vila Flor, D. Sancho Manoel de Vilhena.
— 1835 recebe grandes melhoramentos pelo 7º Conde de Vila Flor e 1º Duque de Terceira, D. António José Meneses de Noronha. Este terá beneficiado de generosa contribuição financeira por parte do monarca D. Pedro V, de quem era próximo.
— Por morte, em 1860, do titular, a quinta terá passado por compra às mãos do 2º Visconde de Sagres (Informação pouco credível face a indicadores absolutamente contraditórios).
1918 — É do primeiro semestre deste ano que existe o, quiçá, único testemunho iconográfico do palácio do Sobralinho, em reportagem fotográfica publicada na revista Ilustração Portuguesa, de que se dá aqui mostra (figs.1 e 2).
1919 — Aquisição do conjunto habitacional por Camilo Infante de la Cerda Sousa Tavares. Sua filha Lúcia casa com o Dr. Armindo Monteiro, Ministro das Colónias e dos Negócios Estrangeiros do Governo de Oliveira Salazar e, entre Fevereiro de 1937 e Agosto de 1943, embaixador em Londres.
— Embora Lúcia e Armindo Monteiro desfrutassem ocasionalmente do magnífico Palacete desde a sua compra, pelo que é conhecido só por volta de 1940, ali se instalarão como residência permanente após o seu regresso de Londres. Infelizmente por pouco tempo, pois a 9 de Fevereiro de 1944, um violento incêndio reduz o Palácio às suas paredes mestras (fig.3).
O desgosto provocado pela tragédia terão levado à decisão de venda, que é realizada a favor de Ricardo Espírito Santos Silva, de quem já se falou.
Grande cultor das artes decorativas, o banqueiro empreenderá, até à sua morte em 1955 e prosseguida por sua filha Rita, uma permanente restauração do palácio, enriquecendo-o com um magnífico recheio.
1987 — A quinta e o palácio são vendidos presumivelmente a um casal inglês, quiçá passando por outras mãos e, finalmente, para a banca, até que, em 1993, são adquiridos pela Câmara Municipal de Vila Franca de Xira.
De quanto fica dito dois nomes sobressaem com ligações directas a Salazar: Armindo Monteiro e Ricardo Espírito Santo Silva.
O primeiro manteve uma presença próxima na década de trinta, nomeadamente como titular das pastas das Colónias e dos Negócios Estrangeiros. Sem embargo, apenas creio que exista um registo alusivo ao Sobralinho em toda a bibliografia disponível. É Franco Nogueira que na aludida biografia de Salazar (Vol. II, “Os Tempos Áureos”, pág. 256) relata que, pela necessidade de se estudar a reforma do Banco Nacional Ultramarino, “Armindo Monteiro sugere (a Salazar) que trabalhem na sua Quinta do Sobralinho, perto de Alverca. Embora pernoite sempre em Lisboa, vai de manhã para o Sobralinho e ali passa os últimos dias de Janeiro” (de 1934).
Como é sabido, o relacionamento entre ambos sofrerá claro esfriamento em resultado das divergências surgidas entre o Chefe do Governo e o Embaixador em Londres, que levará à exoneração deste (Agosto de 1943) e ao seu afastamento de toda a actividade política.
Quanto a Ricardo Espírito Santo Silva sobre quem a inópia de fontes é manifesta, mister é em primeiro lugar desmistificar uma propalada ideia segundo a qual o banqueiro seria íntimo de Salazar e por este recebido quase diariamente em S. Bento aos fins de tarde.
Pois bem, bastou uma rápida pesquisa pela preciosa Agenda/Diário do governante para se desfazerem todas as dúvidas: entre 13 de Maio de 1935, 1º registo de um encontro entre ambos na Residência Oficial e 31 de Outubro de 1954, derradeira reunião havida no mesmo local, tiveram lugar 62 audiências. Dividindo este número pelos correspondentes 19 anos, obtém-se a diminuta média de 3,26 encontros anuais!… Não será, seguramente, prova de uma pretendida intimidade…
E, mais uma vez, a ausência de uma sequer mínima alusão ao Sobralinho, leva a concluir que tal nome nunca tenha aflorado nas conversas mantidas.
Outrossim não recordo alguma menção ao palácio do Sobralinho na correspondência do banqueiro para Salazar existente na Torre do Tombo (AOS/CO/CP 256 e 257), que consultei para livro depois publicado.
Para concluir esta já longa resenha importa, finalmente, centrar a atenção no famigerado quarto secreto. Talvez a melhor descrição dele, embora com algumas incorrecções, tenha sido feita na edição de 2 de Junho de 2011 pelo semanário regional O Mirante, de Santarém, ainda que enfatize como sempre, quanto a mim a patranha de o atribuir a Oliveira Salazar.
Na Biblioteca do Palácio, que obras recentes terão gravosamente alterado o espaço original, deparamos com uma lareira de mármore ladeada por duas estantes de livros em madeira (fig.4), cremos que inédita, bem como as seguintes); a parte inferior da que fica à direita roda sobre si mesma, dando acesso a uma escada em caracol de ferro (fig. 5); esta é bastante íngreme com 26 degraus altos (fig.6); no topo encontra-se uma porta que abre para o quarto (Fig.7); o aposento tem 15 metros e três janelas, com uma visão abrangente para todo o telhado e outrora forrado a papel de que resta uma boa parte (figs.8 e 9); outra porta conduz ao quarto de banho, de paredes ladrilhadas e mais uma janela (fig. 10).
Em suma e ao que parece há uma série de gente a pretender convencer-nos que este quarto, esconso e de difícil acessibilidade, pudesse alguma vez ter servido de refúgio ou qualquer outra serventia ao homem que dirigia os destinos do país e que jamais deu um mínimo sinal de pusilanimidade.
Até prova em contrário e pelo que me toca, não engolirei tal patranha…■