Por Tomás Vieira Mário
Na década de 1980, José Cardoso, um dos fundadores do cinema moçambicano, realizou a primeira longa metragem 100% moçambicana, com o título "O vento sopra do Norte".
Trata-se de um filme que retrata os últimos períodos da ocupação colonial portuguesa em Moçambique em paralelo com a progressão da luta de libertação do país, dirigida pela FRELIMO. O filme procura retratar o sentimento de incerteza e algum pânico instalado entre os colonos, seguido de início de regresso em massa à metrópole. E era a partir do Norte que chegava, pela guerrilha, o vento da mudança. O advento de uma nova era política de Moçambique.
Em circunstâncias políticas profunda e estruturalmente diferentes, nos dias que correm há indícios suficientemente fortes de fim de uma era e início de uma nova, na vida política da Nação.
O marco mais imediato (apenas imediato, e não necessariamente mais importante) do advento de uma nova era são as eleições autárquicas do dia 11 de Outubro.
As consequências políticas deste pleito (independentemente das suas consequências administrativas, isto é, de como vão ser validados e transformados em mandatos) não marcam apenas o fim de um ciclo de governação (10 anos), - o ciclo do Presidente Filipe Jacinto Nyusi - mas também o fim de uma era política.
De que era se trata? A era das vitórias retumbantes e esmagadoras. Esta era iniciou em 2003, com a liderança do Partido e, a seguir, do Estado, pelo Presidente Armando Emílio Guebuza.
Após a vitória, por margens mínimas, aliás na altura muito contestadas, da FRELIMO e do seu candidato, o Presidente Joaquim Chissano, em 1999, a era de Armando Guebuza foi de uma reviravolta furiosa, exactamente no sentido de "esmagar" , nas urnas, o seu principal adversário político, o Presidente da Renamo, Afonso Dhlakama.
Armando Guebuza veio assim pôr fim a uma era, aquela seguinte ao Acordo Geral de Paz (AGP), assinado por Chissano e Dhlakama em Outubro de 1992.
Foi uma era de relativa paz, em que os dois rivais ensaiaram uma escola de convivência e tolerância democrática, onde o termo "irmão" era muito frequente entre eles. Chamemos-lhe, então, era da irmandade. Durou 10 anos (1994-2004).
Já a era das vitórias retumbantes e esmagadoras, iniciada em 2003, prolongou-se por mais tempo, até 2023: portanto 20 anos!
E parece que ela termina agora, num outro Outubro, de 2023.
E quais seriam os factores ou causas desta travessia de era? Certamente as tendências de voto, tal como testemunhadas agora: a tendência do voto a Sul do Save mudou profundamente! Era, até há pelo menos 10 anos atrás, garantido que até 70 por cento do eleitorado a Sul do Save era favorável à FRELIMO: já não o é mais!
Quando, em algum momento, foi aventada a hipótese (a mera hipótese!) da FRELIMO ter tentado ganhar as eleições autárquicas no Município de Chócue por vias não legais...ficou dado o alerta: tinha terminado o período da hegemonia na região Sul.
Se a tendência do voto nas últimas eleições autárquicas de 2018 já indicava essa direcção, sobretudo no Município da Matola (a capital industrial do país), ja em 2023 a tendência acentuou-se, "contagiando" seriamente a irmã, Maputo, a capital política da Nação!
Uma primeira leitura do que possam ser, entre outras, as causas desta mudança profunda das tendências de voto pode ser encontrada no fenómeno que o Prof. Luis de Brito classificou, há alguns anos, por "voto étnico".
Como funcionaria o "voto étnico"?
Historicamente, e tendencialmente, a RENAMO recebeu os votos da maioria das populações do Centro-Norte, abrangendo as etnias Ndau, Cena e Emakwa- Lomwe , habitando as províncias de Sofala, Manica, Tete, Zambézia e Nampula. Portanto a região ao norte do Save. Em consequência, a FRELIMO seria tendencialmente hegemônica na região ao Sul do Save.
E então o que mudou? Ocorreu um fenómeno detetável, mesmo a olho nu: migração massiva de largos grupos de jovens das províncias da Zambézia e Nampula, para a província de Maputo, sobretudo nos últimos 15 anos! Este fenómeno ter-se-á agravado, nos últimos três anos, devido ao terrorismo na província de Cabo Delgado, com impactos quase directos de novo sobre Nampula.
Assim, a par do descontentamento ou desilusão de milhares de outros jovens (e de adultos) originários do Sul, a migração étnica Emakwa-Lomwe para Maputo trouxe consigo o seu voto, tal como o exprime localmente.
Ora, perante o grande desequilíbrio populacional entre as regiões a Norte e a Sul do Save (onde só Nampula e Zambézia "esmagam" o Sul), o segredo das vitórias da FRELIMO era a sua quase hegemonia a Sul. Perdida esta, é, pois, do Sul que está soprando o vento de mudança de era.
Assim, temos à frente, não apenas o fim de um ciclo de governação, mas também o fim de uma era: à era das vitórias retumbantes e esmagadoras, segue-se uma nova era: como irá ela caracterizar-se? Ainda o não sabemos.
Mas as suas marcas são claras: acentuação de sentimentos étnicos; predominância da voz da juventude e dos desafios de rápido crescimento das cidades!
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