Querido João, de certeza ainda não sabes que foste assassinado, pensas que ainda continuas deitado a atravessar a madrugada como outros dias normais. Se calhar, nesse teu silêncio, imaginas a primeira coisa que farás ao acordar, o número de colheres de açúcar no teu chá, se calhar meditas sobre a posição do interruptor e não sabes que foste assassinado.
Que farás, João, quando acordares e de longe em longe mirares o teu corpo sendo recolhido num carro da polícia tal qual um cadáver de um criminoso? O teu corpo atravessando a baía de Catembe e tu sem um pio, sem uma palavra, porque foste calado, foste assassinado. Que farás, João?
Se calhar deixaste muita coisa a meio, João: um texto para o jornal que nem tiveste tempo de colocar um ponto final, um lençol caído a meio da cama porque pensavas que o alinhavas hoje ao acordar, um lâmina de barbear que te continua a esperar em algum canto da casa.
Não sei como foi a tua última madrugada; se calhar meteste o alarme para que te acordasse logo cedo, se calhar o alarme já se fartou de tocar e tu não acordas, se calhar o alarme desistiu de ti e espera na paciência rígida dos números acordar-te amanhã para o jornal, se calhar sonhaste com este país que tem andado de qualquer maneira, se calhar durante a madrugada até sentiste o primeiro fio da manhã e o primeiro barco a lançar-se nas águas de Catembe.
Se calhar, João, os teus assassinos estão, neste momento, a sortear as próximas madrugadas e as próximas vítimas. Assassinaram-te de madrugada para te mostrarem que no país há trabalho, não importa a hora e local.
Se calhar foste assassinado, porque há gente que quer continuar a assassinar o país em paz, porque há gente que sabe que é mais fácil governar um cemitério do que um país. Adeusinho, João! Dou-te um adeusinho, porque não mereces um grande adeus, porque tu estarás aqui enquanto eles não nos matam a todos e estaremos aí, contigo, quando todos formos assassinados. Adeusinho, João.
Sérgio Raimundo - Militar