Por Severino Ngoenha
O filósofo americano Henry David Thoreau, diante da persistência da escravatura, do genocídio dos índios e da invasão do México pelo seu país, perguntou-se – “Como lidar com este mal?”. A sua resposta peremptória foi não compactuar com ele. O filósofo não podia, aos seus próprios olhos, reconhecer como seu um governo que propagava a violência e o mal. Daí a sua icónica obra A Desobediência Civil, onde encoraja “cada homem a fazer saber qual é o tipo de governo capaz de conquistar o seu respeito”.
A obediência é uma intuição primária; não obstante todos os discursos psicológicos e psicanalíticos – de Freud, Jung, Fromm, Lacan, que ensinam como os nossos impulsos originariamente anárquicos e egoístas dificultam a nossa aprendizagem de regras comuns –, a desobediência é, provavelmente, uma das atitudes mais difíceis e requer coragem e tenacidade, enquanto a docilidade é o refúgio dos cobardes e a resignação dos fracos. Desobedecer significa superar algum medo, ultrapassar e abater as cinco principais barreiras da fobia.
A primeira fobia é o medo da punição. É um medo elementar, imediato. Enquanto a obediência não é nada mais do que o resultado de uma relação de força, o produto de uma violência que os psicanalistas chamam primária (e que também se pode chamar submissão), a transgressão comporta um preço que todo o rebelde de capim alto sabe dever pagar: punição, correção, etc. Basta perguntar ao Castigado Langa ou ao Manuel Rodrigues...
A segunda fobia é mais subtil, é o medo que se situa na relação com figuras autoritárias, com todos aqueles que nos deveriam comandar, guiar, orientar para o nosso bem e que temos medo de desapontar: pais, superiores hierárquicos… A nossa obediência, que se pode definir uma relação de subordinação, não é senão um pedido de amor (reconhecimento) dirigido ao superior, que se concretiza num excesso de zelo (por exemplo, encher o maior número possível de urnas) para captar a sua atenção e conquistar o seu reconhecimento. Vive-se – como toda a máquina de operários das falcatruas programadas – atormentado pelo medo de não se estar à altura das expectativas do superior.
A terceira fobia é o pavor da solidão, o que pressupõe uma relação muito horizontal: reproduzem-se comportamentos dos outros por conformismo, e sobretudo não se quer correr o risco de se distanciar do clube, do grupo onde se encontra a segurança (material) e o conforto. É o calor quente e doce da manada, como enuncia Nietzsche.
A quarta fobia é o terror da mudança e da novidade, uma vez que a obediência alimenta o imobilismo. Desobedecer significa sempre introduzir uma ruptura, uma descontinuidade. Mutatis mutandis, a obediência situa-se do lado do conservadorismo e da tradição: como bons soldados e polícias, não façamos perguntas, não discutamos nada. Obedecer é continuar em frente, pelo caminho de sempre.
Existe uma última fobia, mais profunda, mais enigmática, que às vezes a filosofia tem dificuldade em discernir: o medo da liberdade (Isaiah Berlin). Refiro-me à liberdade responsável, liberdade como capacidade de decidir e aceitar as consequências da própria decisão (Booker Washington), porque existe na obediência um mecanismo secreto e quase perverso de desresponsabilização. Quando obedeço, sou protagonista, mas não autor da minha acção. Se me pedem explicações, a minha reacção imediata é – “Perguntem a quem deu a ordem (Roque Silva ou Celso Correia), eu só faço o que me mandam fazer”. A obediência é o único dispositivo que permite a qualquer pessoa agir sem ser o sujeito da sua própria acção. O prazer da desresponsabilização.
A liberdade é uma vertigem e um fardo insuportável ao qual renunciamos facilmente, fazendo o que um Celso qualquer nos manda fazer. Este medo moral da liberdade associa-se, muitas vezes, ao medo que provém da insegurança, e, numa dimensão mais política, estabelece, através de um contrato social de tipo hobbesiano, a minha obediência (Étienne de la Boétie) em troca da minha segurança (emprego, mordomias, promoção). Quando falo de desobediência, não me refiro nem a actos criminais nem a delitos, nem mesmo a transgressões estéticas (antiacademicismo) ou éticas (anticonformismo). Refiro-me aos momentos em que, diante de uma situação intolerável, uma violação evidente e inaceitável dos princípios de justiça e de convivência comum (enchimento de urnas, falsificação de boletins de votos, apagão de luzes...) não posso (não se pode) permanecer passivo. Então (aude), levanto-me e digo não. Posiciono-me, assim, no centro de uma experiência concreta e viva da minha liberdade, como afirmação de um sujeito que refuta totalmente o ínfimo discurso de boa consciência. O gesto de desobediência atinge a universalidade quando os outros são a maioria, mas não representam outra coisa senão a passividade animal da matula dócil de militontos.
Como fora já para Henry David Thoreau no seu tempo, também para nós hoje a questão hic et nunc não é uma oposição entre governo e cidadão, mas entre Governo e consciência, onde os indivíduos exercem o seu julgamento e não servem o partido/Estado como robôs, que não questionam, ou como um boneco de madeira que pode ser modelado da forma que o escultor (o partido/Estado) desejar.