Primeira-ministra italiana quer trocar investimentos em energia por esforços para travar imigração africana. Analista diz que Moçambique foi "forçado" a estar presente pelas circunstâncias no norte do país.
O Presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, foi um dos representantes de mais de 25 países que participaram esta segunda-feira (29.91) na cimeira Itália-África, realizada no Senado italiano e denominada "Uma ponte para o crescimento comum".
O plano apresentado pela primeira-ministra Giorgia Meloni para o continente consiste, resumidamente, em trocar investimentos em energia por esforços para travar a migração. A líder da extrema-direita, que chegou ao poder em 2022 com um discurso anti-migração, prometeu reformular as relações com os países africanos, adotando uma abordagem "não predatória" inspirada em Enrico Mattei, fundador da ENI, a gigante energética estatal italiana.
O chamado "Plano Mattei" destina-se a colocar Itália como uma ponte fundamental entre África e a Europa, canalizando a energia para o norte e trocando investimentos no sul por acordos destinados a reduzir as partidas de migrantes através do Mar Mediterrâneo. Meloni disse que o plano seria inicialmente financiado com 5,5 mil milhões de euros, em parte empréstimos, com investimentos centrados na energia, agricultura, água, saúde e educação.
A Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e representantes das agências das Nações Unidas e do Banco Mundial também marcaram presença na apresentação.
Von der Leyen descreveu o plano como "complementar" ao próprio pacote da União Europeia para África, apresentado em 2022 e no valor de 150 mil milhões de euros. Já a União Africana diz estar disposta a "discutir o conteúdo e implementação do plano", mas o líder da Comissão do bloco, Moussa Faki Mahamat, deixou claro: "Gostaríamos de ter sido consultados previamente".
Roma assume este ano a presidência do G7 e prometeu fazer do desenvolvimento africano um tema central, em parte para aumentar a sua influência num continente onde potências como a China, a Rússia, a Índia, o Japão e a Turquia têm vindo a aumentar o seu peso político.
Em entrevista à DW, o analista Fernando Lima lembra que a Itália é o principal ponto de chegada dos fluxos migratórios e procura agora pontes africanas para encontrar soluções para o problema. Quanto à presença de Moçambique na cimeira, o jornalista diz que Moçambique foi "forçado" a participar devido às circunstâncias no norte do país e aos interesses no setor do gás.
DW África: Giorgia Meloni procura convencer os líderes africanos das virtudes do "Plano Mattei", a nova estratégia de cooperação de Itália com África, mas na verdade quer acima de tudo controlar a questão migratória. Como vê a presença de Moçambique nesta cimeira, convocada por uma primeira-ministra que tem tido uma posição xenófoba contra a imigração africana?
Fernando Lima (FL): O Presidente de Moçambique está em Itália porque a senhora Meloni fez questão de vir a Moçambique propositadamente para convidar o Presidente Nyusi a estar presente nesta cimeira. Em segundo lugar, a Itália não é um país qualquer em relação a Moçambique. Em terceiro, Moçambique tem neste momento alguma dificuldade em movimentar-se em países grandes europeus, como um grande parceiro, portanto, isto significa que Moçambique tem que aproveitar todas as oportunidades que tiver para se afirmar num contexto de cooperação europeia.
DW África: E nesta viagem a Itália, Filipe Nyusi leva também certamente na bagagem o tema da exploração de gás no norte de Moçambique, que tem sido abalado por problemas de segurança...
FL: A Itália é a sede da ENI, que também está a explorar uma das poucas plataformas de gás em Moçambique e, putativamente, pode vir a explorar um dos maiores campos de gás no norte de Moçambique, numa altura em que há muitas reticências, não só sobre a exploração de gás dentro do debate da transição energética, como também em relação ao próprio contexto de segurança no norte de Moçambique. Logo, não obstante ser temerária esta presença, por causa da controvérsia em torno do que representa a primeira-ministra de Itália, digamos que Moçambique foi um bocadinho forçado pelas circunstâncias a estar presente nesta cimeira.
DW África: Nyusi também faz esta viagem numa altura em que está quase no fim do mandato.
FL: Ele quer sair bem do seu mandato e mostrar que, quando um país como a Itália convida Moçambique a vir a uma cimeira europeia, ele vem. Aliás, eu estava a ver as fotografias e só vi Nyusi e [Denis] Sassou Nguesso, [Presidente] do Congo, exatamente o país que tem das melhores relações com a ENI - ou seja, dois providenciadores de gás para a ENI, que são as principais figuras dessa cimeira Itália-África.
DW África: Não é irónico que uma primeira-ministra populista e anti-migração queira agora fazer de Itália uma ponte entre a Europa e África?
FL: Claro que é, mas a Itália - não sei se a expressão é correta - é um dos países mais afetados pela imigração "descontrolada" através do Mediterrâneo e procura pontes africanas para encontrar soluções para este problema. Na Europa, existem respostas muito limitadas em relação a esta questão: ou fazemos a "fortaleza europeia" para resistir à chamada "invasão africana" ou simplesmente abrimos as fronteiras e, portanto, em nome da solidariedade internacional, temos que abrir os braços a esta "invasão africana". Quando eu digo "invasão africana", não estou a falar de pessoas que são alvo de perseguições políticas, mas que, sobretudo, estão envolvidas na chamada imigração económica, ou seja, procurando melhores oportunidades na Europa, que não têm em África.
DW África: Do lado europeu, há um grande interesse nas matérias-primas do continente africano. A União Europeia sabe que tem de combater, de alguma forma, a forte concorrência da China e da Rússia, por exemplo, e reduzir também a dependência do gás russo...
FL: Absolutamente, mas, para isso, existe uma fórmula que tem sido ensaiada e que nestes dias que correm é quase já um lugar comum: se se quer estancar a imigração económica África-Europa, é preciso criar as condições em África para que os africanos tenham alternativas de emprego, de formação e de estabilidade nos seus próprios países, para não tentarem desesperadamente chegar à Europa, inclusive, tornando-se vítimas de redes mafiosas que fazem da migração para a Europa um negócio, nomeadamente aquilo que hoje se define como escravatura moderna.
DW – 30.01.2024