«Se a fé não é uma mentira, será fonte inesgotável de vida espiritual; mas, se como virtude é dom de Deus, nem compreendemos que se imponha pela força nem a vantagem de se contrariar a sua prática. Através da História tem sido muitas vezes programa de governos ou de Estados estender às almas a ânsia de despotismo e destruir nelas o germe da fé. Inglória tarefa! Vem o tempo, repara os estragos, reconstitui as igrejas e o culto, mas já não pode fazer ressurgir virtudes que se não exerceram, nem evitar a triste desolação das almas que perderam um mundo.
À parte o valor intrínseco da verdade religiosa individualmente, socialmente temos necessidade do absoluto, e não vamos criar por nossas mãos de entre as coisas contingentes e efémeras o que existe fora e acima de nós, nem desviar para o Estado a função de decretar o culto e definir os princípios da moral. Esta atitude nos levou a considerar o Poder moralmente limitado e nos tem valido não cometermos o erro ou o crime de deificar o Estado, a força, a riqueza, a técnica, a beleza ou o vício.
Compenetrados do valor, da necessidade na vida duma espiritualidade superior, sem agravo das convicções pessoais, da indiferença ou da incredulidade sinceras, temos respeitado a consciência dos crentes e consolidado a paz religiosa. – Não discutimos Deus.
Não discutimos a Pátria, quer dizer, a Nação na sua integridade territorial e moral, na sua plena independência, na sua vocação histórica. Há-as mais poderosas, mais ricas, porventura mais belas; mas esta é a nossa, e nunca filho algum de coração bem formado teve o desejo de ser filho de outra mãe. Deixemos aos filósofos e aos historiadores o entretenimento de alguns devaneios acerca da possibilidade de diferente aglomeração de povos e até das vantagens materiais de outras combinações que a História não criou ou desfez; no terreno político e social, para nós Portugueses, que somos de hoje e velhos de oito séculos, já não há processo que possa ser revisto, debate que possa ser aberto, pedaço de soberania ou de terra que nos pese e estejamos dispostos a alijar de cansados ou de cépticos.
Sem receio colocámos o nacionalismo português na base indestrutível do Estado Novo; primeiro, porque é o mais claro imperativo da nossa História; segundo, porque é inestimável factor de progresso e elevação social; terceiro, porque somos exemplo vivo de como o sentimento pátrio, pela acção exercida em todos os continentes, serviu o interesse da Humanidade. Vocação missionária se tem podido chamar a esta tendência universalista, profundamente humana do povo português, devido à sua espiritualidade e ao seu desinteresse. Em qualquer caso ela não tem ponto de contacto com o suspeito internacionalismo humanitário de hoje a defender que as fronteiras se abatam para alargar as próprias em prejuízo das alheias – Não discutimos a Pátria.
Não discutimos a autoridade. Ela é um facto e uma necessidade: só desaparece para se reconstituir, só se combate para a entregar a outras mãos. É um direito e um dever – dever que se nega a si próprio se não se exerce, direito que tem no bem comum o seu melhor fundamento. É ainda um alto dom da Providência, porque sem ela nem seria possível a vida social nem a civilização humana. A passagem da criança ao homem, da ignorância ao conhecimento, dos instintos à virtude, da barbárie à civilização, é o fruto do esforço persistente contra a inércia natural, é a coroa de glória da autoridade. A organização, a defesa dos interesses colectivos e a conciliação dos interesses individuais, a ordem, a paz, a definição dos fins a atingir pelo agregado social, a preparação dos meios necessários, o impulso no sentido do melhor são ainda sua obra e fruto.
Na família, na escola, na igreja, na oficina, no sindicato, no quartel, no Estado, a autoridade não existe nunca para si mesma mas para os outros; não é uma propriedade, é um ónus. As suas vantagens são na proporção do bem que se ordena e da felicidade com que se cumprem as ordens. Como é possível que erre, deve poder ser apreciada a sua acção, mas há menor dano em não se deixar criticar do que em não se fazer obedecer. – Não discutimos a Autoridade.
Não discutimos a família. Aí nasce o homem, aí se educam as gerações, aí se forma o pequeno mundo dos afectos sem os quais o homem dificilmente pode viver. Quando a família se desfaz, desfaz-se a casa, desfaz-se o lar, desatam-se os laços de parentesco, para ficarem os homens diante do Estado isolados, estranhos, sem arrimo e despidos moralmente de mais de metade de si mesmos; perde-se um nome, adquire-se um número – a vida social toma logo uma feição diferente.
Tem várias vezes acontecido, em épocas perturbadas de retrocesso à soberania dos instintos, relaxarem-se os laços da família, desaparecerem a intimidade e o pudor, submergirem-se a autoridade dos pais e o respeito dos filhos. Mas só no nosso tempo se ergueu em teoria, em ciência e em programa de Estado o que havia de supor-se passageiro desvairamento.
A natureza reconquistará os seus direitos e a sociedade civil verá mais uma vez como a sua moral, consistência e coesão dependem directamente da moral, consistência e coesão do agregado familiar. Este á na verdade a origem necessária da vida, fonte de riquezas morais, estímulos dos esforços do homem na luta pelo pão de cada dia. – Não discutimos a Família.
Não discutimos o trabalho nem como direito nem como obrigação. Não como direito, porque seria obrigar aqueles que não têm senão o seu braço a morrer de fome; não como obrigação, porque seria conceder aos ricos o direito de viver do trabalho dos pobres. Porque dele se alimenta a vida, provém a riqueza das nações e deriva a prosperidade dos povos, o trabalho é glória e é honra, com diferente utilidade, diverso valor económico, mas idêntica dignidade moral.
Fez-nos a Providência o dom de tornar o trabalho necessário e felizmente, por mais que se progrida e se acumule, sempre há-de ser preciso trabalhar para viver: senão os homens morreriam de tédio numa atmosfera de vício. Se apesar desta necessidade e daquele dever se chega por vezes à situação de serem uns obrigados à inactividade para que outros vivam, é que não temos bem organizada a vida ou não conhecemos o segredo de organizá-la melhor: repugna à natureza das coisas que o trabalho em alguma circunstância deixe de ser factor de riqueza para se converter em fonte de miséria. Sucede por vezes os homens não compreenderem a benéfica disciplina do trabalho, revoltarem-se contra ela e pretenderem viver das riquezas acumuladas consumindo como as abelhas os favos do seu mel. Loucamente a multidão proclamará o direito à preguiça: é o mesmo que sujeitar-se à escravidão da fome e da miséria. – Não discutimos o Trabalho.»
António de Oliveira Salazar