Por Afonso Almeida Brandão
Quando a malta tem fome e, depois de abrir o armário, se apercebesse que os cereais acabaram e que o último pacote de bolachas já está aberto (e mal fechado) há dias, e já chama pelo Criador, toca de apontar no papel (ou quadro magnético) e adicionar à lista de compras. Aqui há os mais precavidos, com listas tipo “excel” que confirmam as existências e que chegando à unidade fazem soar alarmes, ou aqueles resistentes, que depois de esgotarem o papel higiénico concedem a ida ao supermercado quando dão por eles a limpar o dito aos rolos de cozinha. Confiando na memória, nos caderninhos ou em avançadas aplicações, todos eles acabam por elaborar listas de necessidades que não obedecem a ordem ou prioridade específica. O pão não é mais importante que o leite, nem o fiambre chora se estiver depois dos detergentes. A lista é democrática, autónoma e, acima de tudo, tem uma vida própria. O importante é chegar à caixa com todos os itens riscados, sem ligar peva à ordem pela qual os produtos entraram no carrinho. Não raras vezes, ao passar pelo corredor, lá pegamos uma coisa que não constava na lista sem que isso constitua drama ou dê lugar a amuos. Quando temos mais algum no bolso (ou na conta) – desconfio que a última vez que isso aconteceu foi há mais de duas décadas – lá perdemos a cabeça e, na loucura, compramos um pacote de amendoins, olhando previamente para os lados, fugindo aos olhares circundantes que, em surdina, nos apodam de esbanjadores, milionários ou beneficiários do RSI…
E lá vai tudo no mesmo saco, a abarrotar — que até os sacos estão pela hora da morte! —, rumo ao frigorífico ou dispensa até à próxima incursão às finanças, perdão, ao supermercado.
É um ritual pacífico que, verdade seja dita, até nos dói um pouco menos que as idas às bombas de gasolina.
Já nos Partidos Políticos, elaborar uma lista de candidatos a qualquer coisa é tarefa árdua e coisa para custar olhos — às vezes os três! A negociação assemelha-se ao processo de paz no Médio Oriente, sem concessões e sempre com tácticas de guerrilha, obedecendo a um planeamento estratégico e de longos anos de posicionamento de tropas. Aqui, ao contrário das listas de supermercado, não impera o princípio da necessidade em que compramos os bens porque temos que comer. O que vale aqui é o pagamento em que um lugar, na maioria das vezes, corresponde a uma troca de favores. Ou seja, a lista é um prémio por serviços prestados, numa lógica mesquinha de quem apoiou quem, de quem tem mais votos ou de quem vai ficar apeado num futuro próximo e precisa da nossa mão amiga.
Continuamos a sustentar 230 amancebados ao “poleiro” do Poder, numa lógica abrilista que já não se justifica e que os anos fizeram por deturpar. Se o princípio constitucional era, há cinco décadas, dar uma representatividade territorial, cívica e profissional ao Parlamento, essa lógica encontra-se hoje completamente subvertida, num anacronismo incompreensível. O Parlamento já não serve para fazer leis, apenas para sustentar governos, abusando das autorizações legislativas e demitindo-se das suas competências legislativas. O debate parlamentar reduz-se às apologias de uns e aos insultos de outros, numa dicotomia acéfala e sem ganhos reais para o país. Ao mesmo tempo, seja assumidamente, seja de forma encapotada, vigora o princípio da disciplina de voto.
Não importa sequer perder tempo em análises comparativas com a dimensão dos parlamentos dos outros países, face ao número de habitantes, em que ficamos claramente a perder. Nem por isso aqueles funcionam menos eficazmente ou produzem menos legislação. Simplesmente estão lá para servir o povo e não para servirem uns quantos.
Exemplo disso — desses interesses e dessas guerras — é o episódio com Álvaro Beleza, cuja competência e currículo são inquestionáveis, mas que caiu por causa do “choradinho” de um presidente de concelhia que, aliás, bem sabe que a escolha dos cabeças de lista está reservada ao secretário-geral do partido – e, neste caso, recém-eleito.
Merecedora, igualmente, de nota, a postura de José Luís Carneiro, que foi adiando a aceitação do convite para encabeçar Braga, enquanto não obteve as certezas que Pedro Nuno Santos incluía o nome dos seus apoiantes nas listas e lhe daria voz na elaboração do programa.
É isto que vale a palavra de Pedro Nuno, mesmo dentro do próprio PS que, não obstante ter garantido, há menos de duas semanas, a representatividade proporcional de todas as tendências, respeitando os resultados eleitorais, na primeira oportunidade deu o dito por não dito. Não fosse a intransigência e têmpera de José Luís Carneiro e este não teria retrocedido… O trunfo de Zé Luís foi estarmos em pré-campanha e Pedro Nuno não se poder dar ao luxo de abrir mais uma frente de guerra. A cedência foi meramente estratégica, num cenário que não se voltará a repetir.
Fica (mais) uma demonstração do carácter do líder socialista…
E sempre cumprirá fazer uma pergunta:
O que levará hoje, sobretudo alguém que não seja de Lisboa, a querer integrar as listas de deputados?
Não será pelo dinheiro, já que, entre as deslocações, o custo de vida e a duplicação de despesas com o alojamento, não ficará rico…
Não será pelo desejo de defender a sua terra e origens minorando os efeitos do centralismo, já que votam como lhe mandam e, muitas vezes, em prejuízo do que jurou defender…
Não será por um apelo intelectual de fazer diferente, de se bater por outra forma de fazer política, por outros valores, já que passa quase toda uma legislatura sem abrir a boca, sem assinar uma proposta de sua autoria, sem dar um murro na mesa.
É que essa independência conquista-se com voz, com o saber dizer não, com sacrifícios e não com a subserviência que os levou aos lugares que hoje ocupam.
Que outros interesses (pessoais) estão por detrás destas batalhas intestinas? E porque andamos nós a sustentar esta podridão há quase cinco décadas?
As listas de deputados são uma espécie de depósito de restos mortais, o Panteão de cada partido, onde, salvo raras excepções (louvo a escolha do candidato da AD pelo Porto, Miguel Guimarães, ex-bastonário dos médicos), cabem todos aqueles que não têm lugar na sociedade. Ou, pelo menos, que nela não conseguiriam sobreviver, já que toda a vida foram políticos — como se isso fosse profissão — e, sobretudo, da qual acham que se devem honrar…
Mais comentários para quê?