No dia 30 de Novembro de 2021, o Juiz Efigênio Baptista iniciou a leitura da sentença do caso das Dividas Ocultas, que durou 5 dias, tendo culminado com a condenação de 10 dos dezanove réus julgados e, olhando para a própria sentença, temos motivos suficientes para acreditar que há, neste momento, pessoas detidas ilegalmente e outras condenadas sem prova e outras sem terem cometido os crimes de que são acusadas.
Para melhor articulação e análise vamos dividir os dez réus em dois grupos: a) Agentes do Estado; e b) Agentes Privados. Os agentes do estado são António Carlos do Rosário, Director da Inteligência Económica; Cipriano Cisínio Mutota, Director do Gabinete de Estudos e Projectos; Gregório Leão, Director Geral do SISE e Inês Moiane Dove, na altura agente do estado em regime de contrato na Presidência da República. Os Agentes Privados são Ângela Mbande Leão, Armando Ndambi Guebuza, Bruno Langa, Salvador Mabunda, Sérgio Namburete e Teófilo Nhangumele.
Todos eles foram acusados e condenados, dentre vários, pelos seguintes crimes principais, que importa discuti-los: Peculato e Branqueamento de Capitais. São estes dois crimes que contabilizam o maior número de anos na sentença que lhes foi administrada. Para melhor entendimento, vamos separar cada um destes crimes para análise.
Crime de Peculato
Segundo o Côdigo Penal publicado pela Lei 24/2019, de 24 de Dezembro, no seu Artigo 434 (Peculato), define o crime de peculato nos seguintes termos:
“O servidor público que, em razão das suas funções, tiver em seu poder dinheiro, cheques, títulos de crédito ou bens móveis ou imóveis pertencentes ao Estado ou autarquias locais, ou entidades públicas ou a pessoa colectiva, privada ou particulares, para guardar, despender ou administrar, ou lhes dar o destino legal, e alguma coisa destas levar ou se apropriar ou deixar levar ou apropriar ou furtar a outrem, dissipar ou aplicar a uso próprio ou alheio, em prejuízo do Estado, dessas pessoas colectivas ou particulares, faltando à aplicação ou entrega legal, é punido com a pena […].
O disposto no número anterior compreende as pessoas constituídas depositários, cobradores, recebedores exactores, tesoureiros, operadores ou ordenadores do Sistema de Administração Financeira do Estado (SISTAFE) […].
Ora como se pode perceber, o crime de peculato tem como agente o “Servidor Público” ou qualquer outra categoria de pessoa que desempenhe as funções descritas no número 2 do mesmo artigo.
Continuando, vamos ver, á seguir, como a lei define o “Servidor Público”. O Artigo 438 (Conceito de Servidor Público), nos fornece a seguinte definição:
Considera-se servidor público a pessoa que exercer mandato, cargo, emprego ou função numa entidade pública, em virtude de eleição, de nomeação, contratação ou de qualquer outra forma de investidura ou vínculo, ainda que de modo transitório ou sem remuneração.
- Entendem-se como sinónimos de servidor público os termos funcionário, agente de Estado, empregado público, agente municipal ou qualquer outro similar, que se utilize para referir à pessoa que cumpre funções em entidade pública.
- Estão previstas no número 1, também as pessoas que exercem, de facto, qualquer das funções ali referidas.
De tudo quanto a lei definiu, atribuiu, explicou, etc sobre o “peculato” e “servidor público”, nenhum desses atributos aplica-se aos agentes privados julgados e condenado por esse crime, porquanto eles não encaixam, na forma ou no conteúdo, nas definições e conceitos estabelecidos pela lei. Pelo que, os réus Ângela Mbande Leão, Armando Ndambi Guebuza, Bruno Langa, Salvador Mabunda, Sérgio Namburete e Teófilo Nhangumele nunca deveriam terem sido avisados, julgados e condenados pelo Crime de Peculato. Segundo ouvimos no tribunal, os agentes privados não agiram nem de facto ou de juri como servidores públicos na contratação das dívidas ocultas.
Outrossim, não pretendemos aquí que se conclua que os agentes do estado tenham praticado o crime de peculato. Mas, vamos deixar o caso deles para um outro artigo, pois requere um outro naipe de argumentos jurídicos a serem esgrimidos.
Branqueamento de Capitais
Em relação a este crime, urge trazer à tona uma realidade que deve ser analisada à luz da Constituição da República de Moçambique (CRM), publicada pela Lei 1/2018 de 12 de Junho. A CRM, no seu Artigo 2, diz que:
- O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade; e
- As normas constitucionais prevalecem sobre todas as restantes normas do ordenamento jurídico.
Este é um comando vital que impõe a primazia das leis constitucionais sobre todas as leis do ordenamento jurídico nacional, sendo que todas as leis constitucionais estão acima de quaisquer leis nacionais. Aliado a este comando constitucional, existe um outro contido no Artigo 57 que diz:
Único: Na República de Moçambique, as leis só podem ter efeitos retroactivos quando beneficiam os cidadãos e outras pessoas jurídicas.
Aliado a este, há um outro princípio de doutrina jurídica que dá substracto aos comandos constitucionais que reza Nullum Crimen, Nulla Poena Sine Previa Lege, isto é “Não há Crime, nem Pena sem Previa Lei”. Qual é o alcance deste princípio? Isto significa que ninguém deve ser acusado e condenado sem lei. A lei sempre deve ser anterior ao crime. Isto é, um facto ou acto não tipificado na lei como sendo crime, não pode ser usado para incriminar, julgar ou condenar alguém.
Estes conhecimentos do Direito Constitucional são chamados para esclarecer que, à data dos factos relativos ao caso das Dívidas Ocultas, isto é, o período que decorre de 2011 até 14 de Fevereiro de 2019, altura em que os arguidos foram presos, os Código Penais vigentes era o Código Penal publicado pela Decreto 16489 de 15 de Fevereiro de 1929, que passou a vigorar a 24 de Janeiro de 1931 e, posteriormente o Código Penal publicado pela Lei 35/2014 de 31 de Dezembro. Ambos os códigos penais não tipificavam o Crime de Branqueamento de Capitais. Isto é, de 1929 a 2019, o Branqueamento de Capitais nunca foi considerado crime em Moçambique.
O crime de Branqueamento de Capitais só viria a ser tipificado, pela primeira vez em Moçambique, pelo Código Penal publicado pela Lei 25/2019 de 26 de Dezembro. Isto equivale a dizer que antes dessa data ninguém em Moçambique havia sido acusado ou condenado por esse crime. Porquê? Porque o Código Penal vigente até essa altura não criminalizava os actos que mais tarde vieram a ser tipificados como sendo crime.
Olhando para a data de 26 de Dezembro de 2019, data em que o branqueamento de capitais é tipificado como crime, e a data de 14 de Fevereiro de 2019, altura em que os arguidos foram detidos, o leitor perceberá que há um distanciamento temporal de 10 meses. Quer dizer, os arguidos das Dividas Ocultas foram presos e acusados por um crime que não existia no ordenamento jurídico nacional. Isto é bizarro, pois viola de forma flagrante o sacrossanto principio constitucional segundo o qual “Não há lei, nem pena, sem crime”. Importa lembrar aos leitores que somente a lei é que define o que é crime. Portanto, “se a lei nada diz, ninguém nada faz”.
Outrossim, porque o Código Penal é a Constituição da República em acção, vejamos como o Código Penal traduz os comandos constitucionais relativamente aos actos ou factos praticados. O CP, no seu Artigo 2 diz “O facto considera-se practicado no momento em que o agente, ou no caso de omissão, devia ter actuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido”. Em outras palavras, o crime é crime no momento em que é praticado, e não no momento em que é descoberto. Se o acto foi praticado numa altura em que a lei não tipificava o acto como sendo crime, não venha alguém anos mais tarde dizer que houve crime, pois na altura em que o acto foi praticado ainda não eram crime.
Adiante, o Artigo 3 (Aplicação da lei penal no tempo), é abundantemente claro quando determina, de forma inequívoca, que “A lei penal não tem efeito retroactivo […]”. O código penal só pode ser usado para julgar e condenar actos que à data dos factos já os considerava como sendo crimes.
Com tudo acima exposto, temos motivos de sobra para ficarmos indignados e, por conseguinte, questionar que força diabólica moveu a Procuradoria Geral da República (PGR) a acusar os arguidos de um crime que não existia à data dos factos. Mais grosseiramente caricato é entender como o Juiz Efigênio Baptista encontrou “a rationale” jurídica para condenar os réus. Mais ignominioso é perceber como é que os advogados-assistentes do Ministério Público (Ordem dos Advogados) ficaram naquela “Tenda” a assistir, em silêncio cúmplice, a estas atrocidades jurídicas. O mesmo se pode dizer em relação à Associação dos Juízes de Moçambique e a Magistratura Judicial e a do Ministério Público que se remeteram, até hoje, a um silêncio sepulcral em relação à isto.
Olhando só para estes dois crimes, nós aqui no Integrity, movidos pela nossa postura de integridade e verdade, temos uma forte convicção, tal como demonstramos, que os arguidos da Dívidas Ocultas estão sendo injustiçados, em níveis diferenciados.
Urge repor a justiça devolvendo os arguidos à liberdade e restituir-lhes o seu património e a sua dignidade.
INTEGRITY – 19.02.2024