O filósofo moçambicano Severino Ngoenha defendeu esta quinta-feira que a insurgência armada em Cabo Delgado resulta da dissolução da unidade nacional e que os interesses económicos na província rica em gás criaram um conflito enraizado na ideia de injustiça social.
"Isto [o interesse económico ligado aos recursos minerais] dá origem à ideia, em Cabo Delgado, de que [o] petróleo e gás pertencem especificamente ao norte, e que as pessoas do sul vão lá roubar o que é do norte", disse o filósofo moçambicano durante uma conversa promovida pelo Moza Banco para debater a "Nação e Moçambique".
Para Ngoenha, a província de Cabo Delgado vive um "petrojihadismo", onde os interesses económicos das "potências" (multinacionais) provocam conflitos alimentados pela ideia de injustiça social.
A primeira consequência deste cenário, prosseguiu o autor da obra "Das Independências às Liberdades", é a dissolução da unidade nacional e da moçambicanidade, os fundamentos da "Primeira República".
O filósofo alertou para a "fragmentação da moçambicanidade".
"A presença de quem tem desejos (...), usando estratégias e tácticas que nos dividem internamente, significa que hoje, se fomos do Rovuma a Maputo perguntar aos jovens se querem ser moçambicanos (...) muitos deles diriam que não", acrescentou o reitor da Universidade Técnica de Moçambique.
"Isto não significa que sejamos capazes de dar tudo a todos da mesma forma (...) Não é possível fazer isso da noite para o dia, mas é preciso dar às pessoas motivos para pensar que o principal objetivo da nossa jornada daqui para frente é um objetivo coletivo e não um objetivo individual ou coletivo", enfatizou Ngoenha.
A escritora moçambicana Paulina Chiziane declarou ainda que o conflito em Cabo Delgado não se baseou especificamente na religião, alertando para o impacto social da guerra.
"Olha o que está acontecendo hoje em nome de algum Deus. Nosso povo está sucumbindo lá fora. São guerras que se dizem religiosas, mas não têm nada a ver com religião", declarou o Prémio Camões 2021.
Chiziane alertou para as consequências do fundamentalismo religioso, acrescentando que o drama vivido no norte de Moçambique pode ocorrer em qualquer parte do país.
"Do rio Zambeze até aqui [sul], as coisas estão aparentemente calmas, mas na verdade não estão. Em cada esquina temos uma igreja. O que diz a igreja? Cada um com uma ideologia mais estranha que a outra. Você não acha isso anormal?", questionou o escritor.
A província de Cabo Delgado, rica em gás, enfrenta há seis anos ataques reivindicados pelo autodenominado Estado Islâmico, o que levou a uma resposta militar desde julho de 2021, com o apoio do Ruanda e da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), libertando distritos perto de projetos de gás natural na província.
Nas últimas semanas, foram registados casos de ataques de grupos insurgentes em várias aldeias e estradas de Cabo Delgado, incluindo ataques a veículos, sequestro de motoristas e pedidos de dinheiro para a população viajar em algumas estradas, o que está a provocar novas vagas de deslocação.