(Palestra proferida na abertura do ano académico)
A minha formação em jornalismo teve, até agora, três importantes períodos. O primeiro é o período em que trabalhei no emissor provincial da Rádio Moçambique (RM) na província de Niassa, de 1978 a 1981. Aqui inicie a minha infinita aprendizagem de Moçambique; a aprendizagem política.
O segundo período coincide com o meu tempo de Correspondente da Agência de Informação de Moçambique (AIM) em Lisboa, de 1986 a 1993. Portanto um período de seis anos.
Eu fui a Lisboa indigitado por uma instituição que exercia o controlo político sobre a comunicação social e os seus profissionais, o Ministério da Informação, extinto em 1994. Por isso eu exercia a profissão de jornalista na base de comandos políticos. Fazia, portanto, um jornalismo "oficial".
Em Lisboa, porém, vi-me exposto a um jornalismo diferente: liberal. Um jornalismo livre de quaisquer amarras políticas; pluralista relativamente às opções editorias e diverso quanto ao regime de propriedade das respectivas empresas.
Vi-me exposto a um jornalismo que se pretendia, inclusivamente, como escrutinador dos poderes públicos, portanto um jornalismo crítico; ou mesmo como força de controlo social, portanto também agente promotor de mudança da sociedade.
O terceiro momento da minha formação como jornalista começa em Roma onde, de Novembro de 1990 a Outubro de 1992, tive o penoso privilégio de fazer a cobertura jornalística integral das conversações entre o Governo e a Renamo e que culminaram com o Acordo de Paz de 04 de Outubro.
Este terceiro período começa em Roma, sim e termina com a realização das segundas eleições gerais, parlamentares e presidenciais, de 1999.
Neste período da minha formação profissional aprendi, a muito custo, a duvidar, senão mesmo a suspeitar, de pessoas, organizações ou instituições que me insinuem ser portadoras de crenças, valores, princípios ou verdades intocáveis. Ideias não susceptíveis a qualquer questionamento. Talvez mais caro ainda: aprendi a exprimir, pública e francamente, essas dúvidas...sempre que as tenha! Consciente de possíveis consequências.
Mas se todos estes três períodos da minha formação profissional- sobretudo como jornalista político- foram evidentemente muito relevantes, é porém do segundo período, o de Lisboa de que mais pretendo falar, e razão do titulo: "sobre atacar colegas em público".
Posso continuar?
Pois dizia eu que foi a partir do período de trabalho em Lisboa que tomei, pela primeira vez, contacto com uma imprensa pluralista e independente de qualquer poder político. Na altura, na minha experiência de Moçambique, esse facto foi muito marcante.
Nesse contexto, segui aqui alguns momentos extremamente interessantes, de engajamento vigoroso, diria mesmo viril, entre os "media" e as classes dos poderes político e empresarial no Portugal do período de 1985 a 1990.
Este período foi marcado por dois importantes fenómenos: por um lado, o chamado "Cavaquismo", em referência ao domínio político fortíssimo do Primeiro-ministro Aníbal Cavaco Silva, e por outro, a entrada plena do país para a União Europeia, acompanhada de fluxo de muitos milhões de Euros para as necessárias reformas estruturais do país. Com este enorme fluxo de fundos europeus...a corrupção bateu palmas e atingiu níveis históricos.
A sociedade portuguesa estava em pelo período de transformação. O quadro político-social do pós-golpe de Estado de 25 de Abril de 1974 chegava claramente ao fim.
Era um período de alguma polarização política que não podia, evidentemente, deixar a comunicação social "imune": antes pelo contrário!
Notícias sobre corrupção, no interface entre o poder político e o mundo dos negócios, faziam as manchetes dos semanários e alimentavam os debates das Televisões.
Entre os semanários da época, havia um temido pelas classes política e empresarial: era o "O Independente", fundado em 1988. Foi seu primeiro director Miguel Esteves Cardoso (popularizado pela abreviação MEC) , sendo coadjuvado por...Paulo Portas. Uma dupla temível!
Ao longo de anos, quase todas as semanas, surgia uma manchete denunciando uma figura pública (ministros, líderes partidários, etc)com casos de corrupção; uso indevido de fundos europeus, etc. "O Independente" era considerado um jornal da elite, da direita, mas as suas denúncias, geralmente bem documentadas, eram reproduzidas ou citadas por outros "media" e...chegavam ao Parlamento!
Num dos momentos mais fecundos deste período, ocorreu um fenómeno extremamente interessante, que deu uma grande lição à "media" portuguesa. Exactamente o semanário "O Independente" publicou uma estória em que dizia o seguinte (cito de memória):
"Conhecemos um Político que exigiu a um empresário a quantia de 100 mil Euros como condição para ele alterar o sentido de um projecto de lei, colocando-lhe uma vírgula".
Portanto tratava-se de um projecto de lei a caminho do Parlamento e que teria repercussões fortes sobre negócios!
E qual era o sentido da denúncia? Era que políticos corruptos (ministros ou deputados) adulteram o sentido de leis futuras para beneficiar o mundo dos negócios...a troco de muito dinheiro.
Ora, esta "denúncia" foi alvo de fortes ataques por parte do partido no poder; mas a reação colectiva da classe jornalística, em defesa da liberdade de imprensa, veio provocar um fenómeno perverso: quase todos os partidos políticos com assento parlamentar -desde o Partido Comunista até Centro Democrático Social(CDS) e passando pelo Partido Socialista- uniram as suas vozes, exigindo que o jornal revele o nome daquele político, ou então tratar-se-ia de um "jornalismo irresponsável", que faz alegações "levianas", tentando denegrir toda a classe política nacional. Uau!
No auge do "barulho", o Sindicato dos Jornalistas decidiu pronunciar-se. E veio em defesa de "O Independente".
Anos mais tarde, em conversa com Diana Andringa, uma prestigiada veterana do jornalismo português, que chegou a ocupar o cargo de Presidente do Sindicato dos Jornalistas, lembrei-lhe deste processo e conhecendo o seu perfil político, perguntei se ela concordava com a linha editorial de "O Independente", ao que ela respondeu:
Em Portugal existe um acordo tácito entre os "media" e os seus profissionais: nós nunca, nunca nos atacamos uns aos outros. Nem enquanto empresas, e muito menos enquanto jornalistas. É um acordo forte, que firmamos informalmente. Jornalistas nunca se atacam, sobretudo se se tratar de posições pessoais ou opiniões. Se eu tiver uma opinião diferente...até posso ligar para o colega...vamos a um café conversar...De contrário...terá de ser um assunto muito grave! Sabe porquê? Porque é isso que as forças anti-liberdade de imprensa querem!"
É uma das lições que aprendi neste segundo período da minha formação profissional. E assumi para mim mesmo esse princípio: nunca criticar colegas em público, por discordar de suas opiniões!
Agora...cá entre nós: infelizmente temos colegas que, com a maior leveza possível, atiram-se com pedras e paus sobre seus colegas, inclusivamente atribuindo-lhes epítetos vexatórios sem aparente causa.
Enfim...são escolas! Ou falta delas!
Tomás Vieira Mário