Por: Elísio Macamo
(Sociólogo e Docente Universitário)
É um truísmo da ciência política que uma das virtudes mais importantes da democracia é a protecção das minorias daquilo que se convencionou chamar de tirania da maioria.
Tecnicamente, a democracia é apenas uma forma de decisão baseada na vontade da maioria.
Um partido que se faz eleger não é necessariamente melhor do que aqueles que obtêm menos votos.
A maioria pode sempre estar equivocada como, aliás, vemos um pouco por todo o lado no mundo.
Daí a importância do lado ético da democracia que encontra respaldo justamente na ideia de que o mandato que um partido recebe não é para apenas fazer a vontade da maioria, mas sim para identificar o interesse comum e agir conforme o que ele exige.
Alguns estudiosos da ciência política convergem ultimamente na ideia de que há minorias que têm muito poder e que o exercem em nome duma maioria fictícia em detrimento do bem comum.
Em Moçambique, por exemplo, o maior partido é a Frelimo com os seus 4 milhões de membros conforme se diz por aí.
Em relação à população moçambicana esta é uma minoria que, contudo, consegue impôr a sua vontade à maioria constituída por aqueles que não são membros.
Claro que podemos ignorar este facto dizendo que ele apenas reflecte o lado estrutural – e técnico – da democracia.
A Frelimo podia ter apenas cem mil membros e mesmo assim oferecer um projecto político que convencesse 51% do eleitorado – que não corresponde a 51% da população moçambicana!
O problema, contudo, é outro.
A Frelimo, por sua vez, é composta também por minorias dominantes que impõem a sua vontade à maioria dos seus militantes.
Embora nem sempre se articulem de forma clara, as antigas organizações democráticas de massas (as OJM e OMM da vida) fazem parte dessas minorias.
A minoria que mais peso tem, porém, é a dos veteranos que sempre pode apelar para o seu papel histórico para fazer exigências.
Por exemplo, a existência dum ministério tão inútil quanto o dos veteranos é uma manifestação clara do poder relativo desta minoria que, curiosamente, arranjou formas engenhosas de se afirmar alargando o conceito de “veterano” para todo o tipo de gente.
Nos últimos tempos surgiu uma outra minoria, a dos comerciantes com perfil “étnico” definido, que agora tomou de assalto o poder local (municípios, principalmente) e, com o seu poderio económico, ganhou a prerrogativa de não ser ignorada nos processos de tomada de decisão.
Existem várias outras minorias – as famosas “alas”, os grupos de interesses regionais, mesmo grupos étnicos – que fazem do partido Frelimo o parlamento inoficial de Moçambique.
As decisões são chanceladas no jogo de interesses destas minorias de tal maneira que se a gente quiser entender porque certas coisas que parecem claras para leigos como nós não o são para esse pessoal a gente tem que espreitar melhor.
Por exemplo, a continuidade de algum ministro no cargo não depende do seu desempenho, mas sim desse jogo de interesses.
Na verdade, refiro-me a uma ministra em particular.
O problema das minorias dominantes está ligado à dependência das elites políticas dos recursos do Estado.
As minorias não articulam nenhum projecto político movido pelo bem comum.
Articulam reclamações que justificam o seu acesso previlegiado aos recursos do Estado.
A consequência deste estado de coisas é o que Voltaire, um filósofo francês, há mais de 300 anos resumiu numa frase: Deus é um comediante que actua para um público que de tanto medo que tem dele, não consegue se rir.
Em princípio, tudo o que a Frelimo faz ultimamente não pode ser levado a sério desde o TSU, louvores ao seu chefe, inaugurações de residências multi-milionárias para administradores de distritos até à celebração das suas vitórias eleitorais graças aos seus altos níveis de organização, etc.
Os militantes sabem que se trata de piadas, mas têm medo de se rir.
E é neste contexto que se discute a sucessão.
Os candidatos não ocupam o espaço público para anunciar um projecto político não só por medo de que algo lhes aconteça – política é isso mesmo!
A sua maior dificuldades é encontrar a maneira certa de falar sem ferir as sensibilidades das minorias dominantes.
A palavra de ordem é não alienar ninguém.
Um projecto político bem articulado implicaria necessariamente reformas na Frelimo que poderiam pôr em causa o poder das minorias.
Quem vai querer fazer isso se o risco é não entrar na categoria dos que outros querem para que se queira?
É muito complicado.
E pior ainda: uma vez indicado, o candidato vai ter que continuar a servir aquele graças a quem conseguiu que outros quisessem que ele se quisesse.
Os rumores de que os veteranos sugerem agora o nome do General Hama Thai – um indivíduo que se refez de forma impressionante até se doutorar e que foi uma das poucas vozes da Frelimo que publicamente lamentou a falta de informação do governo sobre a violência em Cabo Delgado – fazem parte do problema das minorias.
Não é o país que eles têm no coração, claro, mas sim as suas prerrogativas como grupo.
A ideia de que gente que não protegeu o povo da violência da Renamo, nem foi capaz de manter um exército disciplinado e fiel à bandeira, hoje pode ser a solução para o problema de Cabo Delgado é simplesmente ridícula tanto mais que esse problema não é militar, mas sim político.
Não é político porque precisa dum desfecho negociado, mas político porque a incapacidade do Estado moçambicano de defender a integridade territorial e dar protecção às pessoas decorre da forma como a Frelimo é gerida.
Seria necessário reformar esse partido, mas quem vai pôr o guizo ao gato onde entram em jogo interesses de minorias dominantes (e algumas delas bem violentas)?
Eis o problema!
O país precisa dum poder que não se exerce em forma de tirania da maioria.
A Frelimo, contudo, precisa de se libertar da tirania das minorias.
Não tenho imaginação suficiente para ver como se logra esta quadratura do círculo.