Por Elísio Macamo
A violência contra o Estado em Cabo Delgado não é um problema militar. É verdade que há combates, mortes, destruições e populações deslocadas. Há tropas estrangeiras que ao lado das nossas confrontam os insurgentes. Mesmo assim, o problema não é militar. É político.
Numa república, não existem outros problemas para os governantes senão os políticos. Se há fome, o problema é o que se faz na agricultura e no comércio. Se as pessoas morrem de doenças para as quais existe cura, o problema é o que impede que essa cura chegue às pressas. Se os alunos não sabem ler, o problema é o sistema de educação. Do mesmo modo, se há violência contra o Estado, o problema tem que ser o nosso sistema político, se ele é capaz de reagir de forma adequada aos conflitos que inevitavelmente existem numa sociedade, se as nossas Forças de Defesa e Segurança estão bem organizadas, têm os meios de que precisam, entre outras coisas.
Anda aí um excerto dum discurso do Presidente da República num acto de graduação de agentes policiais. O que ele lá diz mostra claramente que não só tem um entendimento diferente (e equivocado) do que acontece em Cabo Delgado como também que, ao fim de dez anos naquele posto, ainda não parece ter entendido a sua função. Essencialmente, o que ele está a dizer é que só ele entende aquele problema, que ninguém tem o direito de se preocupar com o que acontece lá se nessa preocupação houver alguma manifestação de crítica ao que o governo (não) faz e, finalmente, que o nosso papel como cidadãos é de apenas seguir as orientações de quem nos governa.
Ora, só pensa assim quem não percebe que o que faz uma república é o exercício da cidadania, que governar implica aceitar o direito que as pessoas têm de cobrar responsabilidade e que sem participação política de todos dificilmente será possível resolver problemas colectivos. Infelizmente, este pensamento está profundamente enraizado na cultura política dos nossos governantes e seus apoiantes. Não é possível entender Cabo Delgado, os problemas com TSU, a vulnerabilidade das pessoas às ocorrências naturais, etc. sem antes perceber de que maneira este pensamento enfraquece a qualidade da governação.
Um Presidente que entende o seu cargo não pode falar assim. Tem que se perguntar se tem informado a sociedade devidamente sobre o que se passa. Tem que se interrogar se as decisões que ele tomou beneficiaram do concurso da deliberação tão necessária numa república. Tem que procurar saber o que tem feito para que a sociedade se junte ao governo nos esforços de resolução do problema. Existe um movimento “Cabo Delgado também é Moçambique” que neste momento tão crítico para o país tem sido uma demonstração da seriedade com que os moçambicanos abordam aquele problema ao contrário do governo que, para todos os efeitos, tem estado a brincar.
Acima de tudo, um Presidente tem que partilhar com o povo que ideias tem para tornar o sistema político mais robusto para que ele não seja vulnerável a este tipo de ameaças. Governar é isso. Governar é consertar o sistema quando ele falha.
Mas por mais curioso que possa parecer, o problema nem é o Presidente. O problema são os que governam com ele, desde os membros do governo aos militantes do partido que o colocou à frente dos destinos deste país. São eles que assistem impávidos e serenos ao empobrecimento do espírito republicano que, apesar de tudo, esteve na origem da proclamação da independência de Moçambique. Aquela passagem do hino que diz “nenhum tirano nos irá escravizar” não se refere a uma pessoa. Chama a responsabilidade dos membros do partido que governa – e, em última análise, de todos nós – à necessidade de nunca esquecermos que quem lutou pela nossa liberdade o fez para que fôssemos iguais, participássemos e não tivéssemos a obrigação de obedecer cegamente.
Há quem encolhe os ombros e pensa que o futuro vai julgar o Presidente. Engana-se. O futuro vai julgar aquele que viu o Presidente desesperadamente ultrapassado pelos problemas e, aparentemente, nada fez para o ajudar. Aquele que preferiu assinar comunicados a exaltarem a sua sabedoria. Aquele que o elegeu com 100% dos votos mesmo sabendo que não estava a dar conta do recado. Aquele que assistiu aos atentados contra a separação de poderes e deixou-se ficar. O futuro vai julgar a Frelimo e os seus membros e militantes que preferiram o silêncio à chamada de atenção.