Por Afonso Almeida Brandão
(Com um abraço amigo ao Eng. Carlos Sousa, pelo seu constante interesse e curiosidade pela IA)
A IA traz consigo uma promessa de avanços prodigiosos, podendo o seu impacto , diz-se, ser superior ao da descoberta do Fogo. Mas Tecnologia também acarreta riscos, e há quem tema que a criatura escape ao controlo do criador. Será que Moçambique está preparada para o desafio e ciente das suas consequências?
No seu conto de 1941 «A Bilioteca de Babel», o escritor e poeta argentino Jorge Luis Borges imaginou uma biblioteca “total”, cujas “prateleiras registam todas as combinações possíveis dos vinte e tantos símbolos ortográficos”, de A a Z, “ou seja, tudo o que é dado expressar: em todos os idiomas”.
Continua Borges: “tudo — a história minuciosa do Futuro, as autobiografias dos arcanjos, o catálog fiel da Biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia desses catálogos, a demonstração da falácia do catálogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, o comentário desse evangelho, o comentário do comentário desse evangelho, o relato verídico da tua morte, a versão de cada livro em todas as línguas, as interpolações de cada livroem todos os livros (...)”. Não havia que escapasse a esse gigantesco arquivo.
Cerca de vinte anos depois de o Autor argentino escrever o seu famoso conto, a sua fantasia começava, de certo modo, a gangar forma, quando, no contexto da Guerra Fria, o Departamento de Defesa dos EUA se viu na necessidade de montar uma rede descentralizada de partilha de informações.
Essa rede de informação, a ARPANET, estaria na origem da actual Internet, o equivalente tecnológico da tal Biblioteca de Babel, onde tudo se encontra disponível.
MÁQUINAS CAPAZES DE PENSAR
Mas seria a biblioteca de Borges uma espécie de paraíso do conhecimento ou uma maldição? Como orientarmo-nos num arquivo onde existe “tudo o que é dado expressar”, “em todas as línguas”? Como navegar nessa imensidão sem limites? Como separar o trigo do joio, encontrar o que se procura sem ficar afogado na torrente de dados sem sentido?
Foi em 1955, precisamente o ano em ue Jorge Luis Borges ficou completamente cego, que John McCarthy, um assistente de Matemáica da Universidade de Darmouth (New Hampshire, EUA), teve a ideia de organizar um workshop de verão naquela instituição com um grupo de cientistas escolhidos a dedo. O objectivo era encontrar uma resposta para a pergunta formulada em 1950 por Alan Turing, o matemático gay inglês que decifrou o código Enigma e ajudou os Aliados a derrotar os nazis: “Serão as máquinas capazes de pensar?”.
Sabemos hoje que as máquinas, em particular os computadores, são capazes de fazer quase tudo: escrever textos (ou seja, combinar palavras sem sequências que fazem sentido), conduzir automóveis (os aviões há muito que usam o piloto automático), realizar tarefas domésticas (hoje temos robôs que aspiram ou cozinham sozinhos), jogar xadrez e até pintar e compor música. Mas serão capazes de pensar? Tudo indica que ainda não.
O que a IA — um conceito que saiu do encontro de cientistas em Darmouth — traz de novo é que, se não pensam, estas máquinas têm pelo menos a capacidade de aprender e de se aperfeiçoar. É assim, por exemplo, que as ferramentas de assistência por voz ou de tradução vão adquirindo novas “competências”, tornando-se cada vez mais úteis e adequadas. Na Medicina, a IA não apenas permite processar quantidades enromes de dados de diagnóstico, como testar virtualmente todas as soluções possíveis, e determinar quais delas funcionam, o que vai permitir, em teoria, encontrar curas para doienças hoje incuráveis num prazo relativamente curto e com custos controlados. Quanto à capacidade de aprendizagem, equivale a “capacidade de adaptação”, ou seja, agir de acordo com as especificidades exigidas para um caso particular.
“MAIS PROFUNDA QUE O FOGO”
Em áreas como a Música ou a Pintura — em que temos as grandes obras dos Mestres antigos e modernos, de Bach aos Beatles e de Giotto a Chagall — a IA torna-se pouco mais do que reduncante. Quando muito, pode fazer ao “estilo de”, um pastiche que nada acrescenta à História da Arte. No fundo, é pouco mais do que um falsificador.
Noutro plano, um carro que ande sozinho não faz nada que um ser humano médio não faça.
E até há situações em que seria melhor que a AI não existisse. Quem teve de falar com uma máquina, na arquitectura labiríntica de uma linha de apoio, sabe que essa pode revelar-se uma experiência profundamente frustrante. Para ser Inteligência Artificial ainda lhe falta a inteligência...
Outra área controversa é a da tecnologia militar, onde poderemos ter máquinas cada vez mais perfeitas na arte de perseguir, identificar e massacrar humanos.
Mas há outros domínios em que a IA pode ser realmente decisiva. Quando se consegue tratar quantidades gigantescas de dados à velocidade da luz, o conhecimento vai avançando e vão-se desbravando novos caminhos . A Medicina, claro, é um dos campos que mais podem beneficiar. Mas também há a produção de novos materiais ou o desenvolvimento de novas formas de energia limpa, com todos os benefícios que daí resultariam para o Planeta e para a Humanidade. O que terá motivado a afirmação de Sundar Pichai, o CEO da Alphabet, a holding que detém a Google: “A IA é uma das coisas mais profundas em que a Humanidade está a trabalhar. É ainda mais profunda do que o fogo ou a electricidade”.
SERÃO OS HUMANOS DESCARTADOS?
Neste admirável Mundo Novo há porém quem teme que o criador perca o controlo da criatura. Poderá a IA “ganhar vida própria” e ameaçar os humanos? Poderemos nós acabar por ser descartados pela tecnologia inteligente? Sendo a margem de evolução e de adaptação uma das marcas desta tecnologia, a pergunta é descabida, e a União Europeia acaba de anunciar um acordo para avançar com a regulação da IA — um feito especialmente notável, pois trata-se de algo tão complexo que é difícil os políticos dominarem a matéria.
Por fim, há ainda outro risco. Curiosamente, para triunfar, o ser humano nunca precisou de ser o animal mais forte , nem o mais rápido, nem o mais ágil. Mas foi sempre o mais inteligente — e por isso foi baptizado, com algum optimismo, “sapiens”, “sábio”. Com a sua inteligência, o homem foi sempre desenvolvendo ferramentas que expandiam as suas capacidades, e para as quais ia transferindo algumas tarefas. Para quê desenvolver uma força bruta nos músculos quando se pode usar uma metralhadora ou um guindaste? Para quê treinar a corrida quando há motas que andam a mais de 300 km/hora? Para quê exercitar a memória quando uma biblioteca inteira cabe num disco rígido? Para quê saber a tabuada quando há máquinas de calcular?
E assim sucessivamente. Delegando funções nas respectivas ferramentas, o homem expandiu as suas capacidades, mas também perdeu competências. Por outras palavras: a tecnologia aumenta o nosso alcance e poupa-nos trabalho, mas também nos torna mais preguiçosos e incapazes.
Recentemente, Miguel Nicolelis, o líder da equipa que desencolveu um exo-esqueleto que permitiu a um jovem paraplégico dar o pontapé de saída do Mundial do Qatar, alertou para as alterações que as novas tecnologias estão no próprio ser humano.
“Pela primeira vez na História uma geração aparentemente tem um QI abaixo de seus pais”, revelou o neurocientista brasileiro. “A neurociência está mostrando que isso está afectando o cérebro, que é um grande camaleão. Se o cérebro vê que a lógica do Mundo em redor está mudando, se as contingências estão mudando, ele se adapta.”
A Ciência e os cientistas certamente aproveitarão as vantagens trazidas pela IA. E o comum dos mortais também. Graças ao telemóvel, até pode andar com ela no bolso. Mas corremos sem dúvida o risco de a Inteligência Artificial ser cada vez mais omnipresente, enquanto a Inteligência Natural se torna cada vez mais rara. Inquestionável — numa palavra.
Deixamos, desde já, a promessa de voltarmos a abordar o assunto da IA em próximos artigos.
- Comentário do Engº Carlos Sousa:
Prezado Afonso Brandão,...