Na sequência do veredicto pronunciado na segunda-feira pelo Tribunal Comercial de Londres que condenou o grupo naval francês Privinvest a pagar cerca de 2 mil milhões de Dólares de compensações a Moçambique por corrupção no âmbito do caso das "dívidas ocultas", a empresa informou que vai recorrer da sentença e que não descarta a possibilidade de processar Filipe Nyusi, quando deixar de ser chefe de Estado e já não beneficiar da imunidade presidencial, dentro de alguns meses.
Na sequência de um julgamento que qualificou de "estranho", no qual Moçambique "falhou de forma tão completa em cumprir com as suas próprias obrigações e ignorou as ordens do Tribunal" no sentido de fornecer a totalidade dos documentos que comprovam a sua posição neste processo, o grupo naval pertencente ao empresário franco-libanês Iskandar Safa, falecido no início deste ano, acusa as autoridades moçambicanas de terem optado pela estratégia de "documentos ocultos", inviabilizando a possibilidade de um julgamento justo.
Neste sentido, a Privinvest deu conta da intenção de recorrer da sentença e também de processar Filipe Nyusi, logo que deixar o cargo de Chefe de Estado, no começo do ano que vem. Nyusi era ministro da Defesa na altura dos acontecimentos e a Privinvest argumenta que o Presidente actualmente em exercício é quem deve ser responsabilizado.
"Ao contrário de todas as outras partes envolvidas nessa disputa, a Privinvest não fez acordo com Moçambique. A Privinvest optou por não ceder à pressão implacável de um estado soberano imerso em segredos e apoiado pelos seus apoiantes internacionais e seu exército de advogados caros", refere no seu comunicado a empresa antes de acrescentar que "se manteve comprometida em tentar fazer com que o Presidente Nyusi reconhecesse a verdade sobre o que ele fez e sobre o que aconteceu quando a Privinvest embarcou nos Projectos com a República muitos anos atrás."
De acordo com a Privinvest "todas as alegações feitas por Moçambique de corrompimento do ex-presidente Guebuza, seu filho, do ex-chefe do serviço de segurança de Moçambique, de um funcionário sénior do serviço de segurança de Moçambique, da ex-directora nacional do Tesouro, de ex-funcionários do Credit Suisse (condenados criminalmente) e de outros não foram comprovadas. No entanto, a Privinvest está alarmada com a conclusão oposta do Juiz relativamente ao ex-Ministro das Finanças de Moçambique, Manuel Chang. Essa conclusão, da qual a Privinvest pretende recorrer, baseia-se em grande parte em inferências e não é apoiada por uma análise confiável."
Na óptica do grupo naval francês, "essa é uma consequência directa do facto de Nyusi e sua elite terem desafiado despachos do Tribunal Inglês e se terem recusado a prestar depoimento em apoio aos argumentos do seu próprio país, ou a entregar os documentos necessários".
Reagindo a este comunicado, Borges Nhamire, pesquisador do Centro de Integridade Pública (CIP), começa por constatar que a reputação da Privinvest ficou seriamente abalada.
"É natural que a Privinvest não se conforme com a decisão. Esta decisão é muito pesada para a Privinvest, não muito necessariamente do ponto de vista financeiro. O dinheiro que está em causa é muito, mas sobretudo do ponto de vista reputacional. A sentença do juiz é uma afirmação muito forte, que diz que é um grupo de pessoas de países desenvolvidos que se organizaram para defraudar um governo ou um povo de um país em desenvolvimento", considera Borges Nhamire ao realçar que "do ponto de vista reputacional, todo o governo de um Estado democrático que receber sobre a mesa uma proposta de negócio com a Privinvest, vai dizer 'não, nós não podemos fazer negócio' com uma empresa que foi condenada em tribunal de uma nação desenvolvida, com um poder judicial independente, que foi condenada por corrupção num país africano."
Por outro lado, o investigador que tem acompanhado de perto este dossier considera que a reacção de "ira" da Privinvest contra o chefe de Estado Moçambicano é "compreensível", dado que, a seu ver, o principal arquitecto da condenação da Privinvest foi o Presidente Nyusi, mas que uma acção contra ele terá um impacto limitado.
"Quem é o responsável principal desta condenação é o Presidente Filipe Nyusi porque o Presidente é a pessoa que autorizou o governo de Moçambique, através do Ministério Público, a iniciar esse processo em Londres. (...) Então compreende-se esta ira que a Privinvest tem contra o Presidente. Agora, daí a dizer que vai processar o Presidente, até pode processá-lo. Mas não creio que um processo contra o cidadão Filipe Nyusi, que já não será Presidente da República, tenha o mesmo impacto que teria um processo contra um Presidente em exercício. Porque o cidadão Filipe Jacinto Nyusi, depois de sair da Presidência, não carrega consigo uma Nação de mais de 30 milhões de pessoas, não dirige um Estado, é um simples cidadão", comenta o pesquisador.
"A própria Privinvest sabe que andou a distribuir dinheiro a dirigentes moçambicanos, sabe que a Nyusi não deu absolutamente grandes quantidades comparativamente com aquilo que foi dado a Ndambi Guebuza, comparativamente com aquilo que foi pago a Manuel Chang, comparativamente com aquilo que foi pago para o partido Frelimo. (...) Isso mostra que Nyusi era um peão neste processo das 'dívidas ocultas'. Era um simples ministro de defesa num país com um sistema presidencialista onde os ministros são simplesmente ajudantes do Presidente. Então o Presidente Nyusi não é a pessoa-chave neste processo das 'dívidas ocultas'. Da parte do Estado moçambicano, a pessoa chave é o Presidente Guebuza e a sua cúpula", considera ainda Borges Nhamire.
Na óptica do estudioso, os antigos dirigentes do país "fazem parte do esquema" e "essa perseguição notável ao Presidente Nyusi é o indício de que não aceitou fazer parte do esquema, antes pelo contrário". Contudo, Borges Nhamire considera que não do interesse da própria empresa atacar Filipe Nyusi em justiça, "porque se o Presidente tiver que responder a algum tribunal, então vai arrastar consigo outras pessoas em que a Privinvest não quer tocar, incluindo o Presidente Guebuza".
Recorde-se que a decisão anunciada na segunda-feira pela justiça britânica é o culminar de praticamente cinco anos de contencioso naquela jurisdição à qual Moçambique recorreu alegando corrupção, conspiração para lesar por meios ilícitos e assistência desonesta para anular dívidas e reclamar compensação financeira.
Maputo reclamava uma indemnização de um pouco mais de 3 milhões de Dólares ao grupo naval e ao seu proprietário Iskandar Safa, por alegadamente pagarem subornos a funcionários públicos, nomeadamente ao antigo ministro das Finanças Manuel Chang, actualmente detido nos Estados Unidos.
Na altura dos acontecimentos, o governante assinou garantias estatais sobre os empréstimos contraídos -sem conhecimento do parlamento moçambicano- pelas empresas públicas Proindicus, Ematum e MAM entre 2013 e 2014.
Reveladas ao público em 2016, as dívidas foram estimadas em quase 3 mil milhões de Dólares e levaram instituições internacionais como o FMI e o Banco Mundial a deixarem de cooperar durante largos anos com este país considerado como um dos mais pobres do mundo.
RFI – 31.07.2024
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