Desde 2015 que o povo moçambicano tem ouvido, com certa regularidade, o termo “dividas ocultas”. É verdade que não há consenso no seio dos profissionais da imprensa sobre o uso do termo, pois alguns entendem que o mesmo sugere o paranormal. Outros termos como “dívidas vergonhosas”, “dívidas escandalosas” e “dívidas não-declaradas” têm sido usados.
Mas a que se deve esta multiplicidade de termos para designar algo que, supostamente, devia ser entendido da mesma maneira por todos? De forma aleatória, inquirimos a dez amigos, numa amostragem sem nenhum critério científico, para apurarmos a exactidão do seu entendimento sobre este propalado escândalo financeiro. Espantamo-nos com a diversidade das respostas. Para uns, “estes tipos roubaram o dinheiro do povo e se dividiram entre eles.” Para alguns é porque o “O Governo de Guebuza contraiu as dívidas sem a autorização do Parlamento”. Outros dizem que dívidas ocultas têm a ver com “projectos de fachada que foram criados e usados como pretexto para roubar o dinheiro dos americanos e se dividirem entre eles.”
Esta plétora de respostas díspares mostra o quanto as pessoas estão desinformadas, ou confundidas sobre o verdadeiro conteúdo do processo das dívidas ocultas. Longe de nós a veleidade de tentar responder, com propriedade, a esta pergunta, sob o risco de também falharmos, vamos tentar buscar as respostas nos casos judiciais que correm os seus trâmites nas diferentes capitais do mundo nomeadamente Londres, Maputo e Nova Iorque.
Não pretendemos esmiuçar o que está contido nas acusações de cada processo em cada praça, pois para tal, teríamos de estar munidos de outras competências em matérias de direito, mas tão somente pretendemos trazer para o conhecimento geral o que é que cada processo visa atingir.
Nova Iorque
Pelo que consta, este assunto das dívidas ocultas é despoletado, nos fóruns judiciais, pelos americanos, na sequência de as autoridades moçambicanas terem “defaultado” o pagamento da porção da dívida que deveria ser honrada em 2017. Esta dívida refere-se ao valor que os investidores americanos terão injectado na compra dos EMATUM Bonds.
Mas como é que os investidores americanos ficam envolvidos?
Segundo consta, em 2016 o Governo de Moçambique trabalhou com o Banco Credit Suisse no sentido de reestruturar a dívida da EMATUM, no valor total de $850 milhões. Para o efeito, convertem a dívida detida pelo Credit Suisse em títulos de dívida (Bonds), que posteriormente os venderam a investidores norte-americanos, nos Estados Unidos. O valor arrecadado dos investidores americanos foi de $450 milhões, o qual foi directamente para os cofres do Credit Suisse, no sentido de reduzir o estoque da dívida detida por um só credor.
Mas qual é a necessidade de fazer essa operação de conversão?
É simples de entender! As dívidas comerciais com os bancos são parceladas em meses e pagas segundo o plano de reembolso acordado com o devedor. Se no plano de reembolso acordam saldar a dívida em 6 anos, o valor da dívida é parcelada devidamente, e cobrado mensalmente ao devedor até ser saldado. Significa que as empresas devedoras devem ter receita suficiente para poder reembolsar o valor da dívida. Caso contrário, entra em incumprimento ou “default”.
Agora, quando os valores provêm dos investidores de mercado, a situação é bem diferente. O investidor é pago com os lucros que são declarados anualmente, se houver lucros. Caso não haja lucros, são deferidos para serem pagos em anos de boa safra, quando os directores assim o decidir. No caso em apenso dos Títulos de Dívida da EMATUM, a negociação foi feita directamente com os investidores americanos onde foram acordadas modalidades de reembolso as quais a parte moçambicana veio a não honrar.
É este incumprimento de reembolso da dívida que levou os investidores norte-americanos a se queixarem contras as autoridades moçambicanas junto do Departamento de Justiça dos Estados Unidos.
Qual é o envolvimento de Manuel Chang nisto?
Segundo jornal online da Voz da América (VOA) de 14 de julho de 2023, citando a acusação do Ministério Público Moçambicano “Chang é acusado de fraude electrónica, fraude de valores imobiliários e lavagem de dinheiro, e de ter sido subornado pela companhia Privinvest para garantir o apoio do governo à emissão de dois mil milhões de dólares de títulos de dívida.” Especificamente, “A procuradoria alega que Chang assinou os documentos que deram autorização à Privinvest para vender os títulos de dívida a investidores internacionais, incluindo investidores americanos, e que nunca foram pagos.
Olhando atentamente para as alegações da PGR, qualquer um pode se perguntar: como é possível a Privinvest ter vendido os títulos da dívida a investidores norte-americanos se a dívida era detida pelo banco Credit Suisse e não pela Privinvest? Ademais, a delegação que viajou para os Estados Unidos para vender os títulos da dívida era composta por quadros seniores do Governo da República de Moçambique, Executivos Seniores do Banco Credit Suisse e pelos Executivos Seniores da EMATUM. Nenhum funcionário da Privinvest fez parte do roadshow que foi vender os papéis da dívida da EMATUM nos Estados Unidos. Se estão lembrados, este foi um dos argumentos que pesou para a absolvição de Jean Boustani nos Estados Unidos. Esta alegação da PGR é tendenciosa e desonesta.
Manuel Chang é envolvido por ter assinado a Garantia Soberana que foi usada pelo Credit Suisse para convencer os investidores norte-americanos a comprarem os títulos de dívida da EMATUM. Segundo a acusação americana, o antigo ministro é apontado como tendo feito parte do esquema que defraudou investidores norte-americanos e “serviu-se do sistema financeiro norte-americano para ganhar dinheiro de subornos e comissões e ainda fez a lavagem do dinheiro do crime praticado, usando, igualmente, o sistema financeiro dos EUA”. É importante prestar atenção a detalhes críticos desta operação. Manuel Chang assinou a garantia soberana no desempenho das suas funções de Ministro das Finanças, no consulado do presidente Armando Guebuza, em 2013. O advogado Adam Ford disse que Chang era obrigado a assinar os documentos porque “esse era o seu papel”. “Pela sua posição ele assinou-os, mas não foi a sua decisão.”
Notem o segundo detalhe: Manuel Chang não assinou a garantia para ser usada nos Estados Unidos, pois em 2013 quando ele a assinou, não existia nenhum plano de reestruturação da dívida da EMATUM. O plano de reestruturação da dívida da EMATUM surge em 2016 com o actual Governo de Filipe Nyusi que, em parceria com o Credit Suisse, usaram a mesma garantia passada por Manuel Chang em 2013, para convencer os investidores norte-americanos a comprar os EMATUM Bonds. O Manuel Chang não poderia ter passado nenhuma outra garantia em 2016 pois ele já não era Ministro da Economia e Finanças.
Tendo analisado o acima exposto, é sensato e lógico concluir que o julgamento de Nova Iorque pretende responsabilizar as pessoas que estiveram envolvidas na emissão da garantia soberana, preparação, divulgação, promoção e venda dos títulos da dívida aos investidores norte-americanos nos Estados Unidos.
O último detalhe aqui prende-se à Garantia Soberana que não foi passada para os investidores norte-americanos, mas sim para o Credit Suisse, contra o desembolso dos $850 milhões por eles disponibilizados. Pelo que, a decisão de converter a dívida em título da dívida e vender aos norte-americanos é posterior. É de 2016. Manuel Chang não pode ser responsabilizado pela forma como os actual governo, em parceria com o Credit Suisse, usaram a garantia soberana para “defraudar” os investidores norte-americanos.
Esperamos que o julgamento que está prestes a iniciar concorde com a nossa linha de pensamento e que Manuel Changa seja desresponsabilizado pela emissão da garantia. Em relação aos crimes de subornos e branqueamento de capitais, estamos ávidos de ouvir o laudo acusatório e a defesa do réu.
Londres
Na capital britânica correm vários processos iniciados por Moçambique contra a Privinvest, Credit Suisse e VTB alegadamente porque “funcionários públicos moçambicanos foram subornados pelo grupo naval Privinvest” para obter transações e garantias soberanas. Segundo o advogado da PGR Jonathan Adkin, “Como resultado destas transações e garantias, a República [de Moçambique] sofreu e continua a sofrer enormes perdas”, contra as quais pretende uma indemnização monetária no valor de $2.2 mil milhões.
Em suma, Moçambique pretende a anulação das garantias soberanas emitidas pelo Estado Moçambicano para a contratação dos financiamentos para as empresas PROINDICUS, EMATUM e MAM e indemnização pelas perdas inerentes.
Contra todas as expectativas, informações foram passadas pela PGR e pelo Ministério da Economia e Finanças em como a PGR havia negociado satisfatoriamente a resolução dos casos em litígio, faltando apenas negociar com a Privinvest. Detalhes desses acordos encontram-se encobertos por um manto de secretismo.
A nossa expectativa é que, no próximo dia 17 de julho, durante a leitura da sentença, o juiz da causa divulgue o conteúdo dos acordos alcançados pelas partes, os quais, esperamos nós, venham a fazer parte integrante da sentença.
Maputo
A acusação deduzida em Maputo pelo Ministério Público contra os dezanove (19) arguidos tinha elementos anedóticos e ridículos, que denotavam um promíscuo desejo de obstruir a verdade dos factos, por parte do acusador. O primeiro paradoxo tinha a ver com a qualidade dos arguidos que, com a excepção de apenas 3, eram todos agentes privados. Na altura, nos indagávamos, indignados, sobre como é que o Ministério Público estava a imputar crimes praticados por agentes públicos a agentes privados. O segundo paradoxo prendia-se com a falta de provas materiais que associavam os arguidos aos crimes. O julgamento foi conduzido sem produzir nenhuma prova que implicasse a maioria dos arguidos no desenho, aprovação dos projectos, emissão de garantias, assinatura de contratos de fornecimento e financiamento dos projectos, incluindo a conversão da dívida da EMATUM para títulos de dívida.
Foi no meio destas indefinições, falta de provas e clareza da acusação que o Juiz da Causa Efigénio Baptista se viu forçado pelo curso do julgamento a afirmar que estava ali para julgar subornos e não dívidas ocultas. Ficou claro que o Ministério Público havia apresentado réus errados, na sua maioria, para os imputar culpa por crimes associados às dívidas ocultas. Ficou claro que, contra todas as evidências, o Ministério Público estava, politicamente, decidido a condenar uma parte daqueles réus, entre agentes públicos e agentes privados.
Como que a querer demonstrar que era implacável na luta contra a corrupção e que, também, era defensor da ética pública e transparência no judicial, o Juiz Efigénia Baptista condenou algumas pessoas que não conceberam os projectos, não assinaram nenhum contrato de fornecimento ou de financiamento. E, no caso dos agentes privados, nem ficou demonstrado ou provado como é que teriam influenciado a prática desses actos por agentes públicos. Bizarro, para dizer o mínimo!
É perante esta realidade que temos dificuldades de estabelecer, com clareza e sem margem de erro, o que se pretendia com o julgamento de Maputo. No meio desta confusão, só nos resta inferir que o Ministério Público pretendia com o julgamento responsabilizar politicamente o Presidente Armando Guebuza e pessoas, supostamente, da sua entourage pelo descalabro económico e financeiro em que o país se encontra, e assim, justificar a sua prisão e destruição política, de modo a obviar expedientes e agendas de forças reacionárias externas interessadas pela destruição das nossas conquistas, subverter a nossa soberania nacional e controlar os nossos recursos.
Está abundantemente claro para nós que as pessoas que autorizaram os projectos, assinaram os contratos de fornecimento e financiamento, emitiram pareceres favoráveis para emissão das garantias soberanas, converteram a dívida da EMATUM em títulos de dívida que foram vendidos aos investidores norte-americanos se encontram todos fora destes processos, por enquanto.
Conclusão
Se a nossa leitura dos factos for correcta, esperamos desaires no desfecho destes processos. Antevemos a absolvição, total ou parcial, de Manuel Chang e, possivelmente, o arrolamento de novos nomes de pessoas que estiveram directamente envolvidas no processo de conversão da dívida da EMATUM em títulos de dívida e posterior venda aos investidores norte-americanos nos Estados Unidos.
Em Londres não se pode esperar muita coisa pois a PGR quando se viu encurralada correu para negociar directamente com o Credit Suisse e VTB, nos termos e condições que preferiu manter em sigilo, ao contrário da toda a propaganda que se fez em torno das tais propaladas dívidas ocultas. É no mínimo estranho que a PGR não tivesse vindo a terreiro “esfregar na cara da opinião pública nacional e internacional” as vitórias que obteve em Londres. Esta não é a actuação costumeira da actual direcção da PGR.
Em Maputo, tendo gorada a pretensão do terceiro mandato do Presidente Filipe Nyusi que justificaria a manutenção do status quo, antevemos que os processos em recurso no Tribunal Superior de Recurso tenham um desfecho favorável aos réus pois, que se diga em abono da verdade, este processo é político que visa a busca de bodes expiatórios para consumação de objectivos e agendas inconfessáveis. Feliz ou infelizmente, os patronos ou os pontas-de-lança das tais agendas estão hoje a enfrentar a triste realidade de perda de poder e as possíveis consequências associadas a essa situação.
No final das contas, é este enigmático mês de julho que nos trará todas as respostas. No dia 15 ou 29 de julho teremos o início do julgamento em Nova Iorque. A 17 de Julho teremos a leitura da sentença em Londres. Tudo o que for dito nesses locais terá o potencial de influenciar o desenrolar dos trabalhos e, quiçá, as decisões políticas que serão tomadas pela Sessão Extraordinária do Comité Central, a realizar-se no próximo dia 19 de julho de 2024.
A meio desta confusão e incerteza, segredos, mentiras e conspirações gostaríamos que estes todos julgamentos nos esclareçam uma coisa: o quê que foi adquirido com os valores contratados, a situação desses equipamentos e o que é que o estado pretende fazer com eles.
INTEGRITY – 12.07.2024