Por Elísio Macamo
Há uma maneira de matar o debate público. Consiste em criar espantalhos e depois abatê-los. Alguém diz, por exemplo, que nem todo o casamento prematuro deveria ser punido. Um adversário dos casamentos prematuros reage dizendo que quem diz isso é um violador de menores e logra com isso que essa pessoa seja vilificada em praça pública. A discussão dum assunto sensível deixa de acontecer e a sociedade perde.
A viabilidade duma sociedade não depende de todos estarmos de acordo sobre tudo. Depende de termos regras mínimas que nos permitam alcançar resultados mais ou menos consensuais, ou pelo menos, que não obriguem ninguém a concordar com os valores por detrás do resultado, mas apenas a respeitá-lo.
Isto é a propósito da decisão do Conselho Constitucional a desfavor da CAD. Vejo todo o tipo de analogias que têm como objectivo “memificar” ou transforma-la num espantalho fácil de abater. Não sou jurista e embora a decisão tenha sido escrita da forma mais impenetrável possível – como é hábito entre os nossos juristas – após várias leituras e com a ajuda de quem tem formação na área achei-a plausível.
Agora, ser plausível não significa ser reveladora da verdade das coisas. Significa apenas que eu reconheço a qualidade da sua fundamentação e que eu posso aceitar, mesmo sem concordar com os valores que a sustentam. A distinção entre irregularidades que invalidam absolutamente ou relativamente faz muito sentido como argumento. Alguns dos “memes” que andam por aí simplesmente passam por cima dela e dão a impressão de o CC não ter sido diferenciado na sua argumentação. Isso parece-me intelectualmente desonesto.
Um dos valores que acho ter sido violado tem a ver com o que chamaria de princípio de caridade na regulamentação de processos eleitorais. Esse princípio consiste na ideia de que a regulamentação devia ter como objectivo garantir a maior participação possível. Isto é, perante irregularidades numa candidatura os órgãos eleitorais não deviam eliminar, mas sim fazer tudo para que elas sejam sanadas de modo a que quem quer concorrer o faça.
Dessa maneira, contribui-se para a consolidação da democracia, para a promoção da harmonia social e, finalmente, para que os resultados tenham maior legitimidade social. Então, o Conselho Constitucional foi impecável na sua decisão, mas eu lamento que a legislação eleitoral não se baseie neste princípio de caridade.
Fui convidado pelo CIP para participar numa discussão sobre este assunto esta manhã. Como tive que o fazer por via virtual, contudo, a minha participação foi prejudicada pela qualidade da internet a que tenho acesso.
Não pude, portanto, ouvir bem o que os outros painelistas diziam, nem transmitir o que penso sobre o assunto. Por causa disso, deixo aqui registado o que queria dizer nessa discussão. Pelo que pude entender, o debate parecia estar orientado para destacar uma espécie de conluio entre o Conselho Constitucional e os partidos representados na Comissão Nacional de Eleições. Nas condições actuais do País marcadas por uma desconfiança vincada em relação à isenção das instituições, essa suspeita faz todo o sentido. Contudo, acho que ela é sintomática também do problema.
O problema é a polarização política. O debate público em Moçambique não se faz com base na discussão dos méritos das questões. É com base no tribalismo político. A razão está sempre do lado da minha tribo, não importa o quê. Uma das características da polarização é a externalização de problemas. Isto é, o culpado nunca sou eu, mas alguém de fora que me quer mal, daí que seja importante cerrar fileiras. A este propósito, há uma questão que não está a ser vista, sobretudo por aqueles que simpatizam com a CAD, nomeadamente a sua responsabilidade no que está a acontecer.
Explico-me. Os problemas que a CNE e o CC apontam são reais, independentemente do enquadramento jurídico que a eles possa ser dado. Como é que a CAD não viu e acautelou isso? Como é que uma formação política que quer mudar o país não se acautelou devidamente contra um “inimigo” cheio de manobras e que, à partida, haveria de se servir de todo o tipo de artimanhas para a prejudicar? Estas perguntas não são académicas. São políticas.
Que esperar de quem quer fazer a revolução, mas sem se acautelar? Que esperar de um candidato presidencial que se junta a um grupo aparentemente já “existente” sem tomar as devidas cautelas? Será que é prudente fazer política na base da conveniência do expediente político? Vai ser assim que ele vai governar? Que escrutínio ele fez aos partidos que compõem essa coligação, como chegou à conclusão de que eles são os melhores companheiros numa viagem tão importante e que garantias tem ele de que uma vez chegado ao poder vai realmente conseguir conciliar os vários interesses dessa gente num projecto político coerente?
É preciso ter muita credulidade para apostar num projecto político desta natureza.
Até certo ponto, isto lembra a nossa PGR em Londres. Foi queixar ao pai grande inglês que os libaneses nos corromperam e nós somos imaturos para assumir responsabilidade por isso. Quem nos corrompeu é que deve ser punido – o que até é verdade, mas não é toda a verdade. E a nossa responsabilidade? Numa esfera pública normal devia haver espaço para se reflectir sobre a responsabilidade da CAD na sua “morte” prematura.
Só que para isso acontecer, tínhamos que dar um intervalo à memificação da política e começarmos a discutir os méritos das questões.